Etanol pode levar a uma devastação incomensurável

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Fernando Saker
01/06/2007

 

O Correio publica a entrevista que o colunista do Correio, Rodolfo Salm, concedeu ao estudante de jornalismo Fernando Saker, a respeito dos biocombustíveis. Segundo Salm, energias verdadeiramente renováveis no Brasil somente sairão do papel se o povo pressionar o governo para que as leis ambientais sejam cumpridas.

 

Fernando Saker: Como você vê o debate que vem sendo feito no Brasil (e fora também) sobre os biocombustíveis? O que falta ser discutido?

 

Rodolfo Salm: Falta ser discutido mais precisamente como serão divididos os custos ambientais e sociais da produção dos biocombustíveis. Os benefícios são globais, porque a atmosfera do planeta como um todo ficaria menos sobrecarregada de gás-carbônico do que de outra forma, mas e os prejuízos? Os prejuízos podem ser principalmente locais, na forma de degradação do solo, de perda da qualidade do ar com as queimadas, da ocupação da terra que poderia ser utilizada para outros fins, mais de acordo com os interesses do nosso povo etc. Os prejuízos sociais se dão principalmente com o etanol, dadas as péssimas e degradantes condições de trabalho dos cortadores. Outro aspecto que acho que precisa ser melhor discutido é a finalidade da produção. Pessoalmente sou contrário à idéia de virarmos exportadores de combustível. Acho que primeiro deveríamos pensar na nossa própria matriz energética. Ser exportador de produtos agrícolas de baixo valor agregado não vai levar o Brasil a lugar nenhum.

 

FS: Com relação ao cultivo de cana-de-açúcar, seu artigo “Palmeiras são a melhor opção para os biocombustíveis” cita tanto os defensores do etanol, que dizem ser um combustível limpo, como aqueles contrários a isso, que temem a expansão do etanol e a ameaça de desmatamento das florestas e de outros cultivos. Qual sua opinião?

 

RS: O cultivo da cana traz uma série de prejuízos ambientais e sociais locais que vão nos afetar, mas não vão afetar a Holanda, por exemplo, que está no limite de ser inundada devido à subida dos oceanos associada ao efeito estufa. Na verdade, para os holandeses pode ser até bom que o Brasil se transforme em um imenso canavial, desde que se torne um grande produtor de etanol, e ele possa de fato substituir boa parte do petróleo que é queimado no planeta. Isso reduziria os riscos de aquecimento global, a intensidade da elevação do nível do mar que ameaça os Países Baixos e várias outras áreas em todo o mundo, inclusive no litoral do Brasil.

 

Mas caso esta produção de etanol realmente se desenvolva em uma escala muito superior que a atual em nosso território, a devastação que isso vai causar será imensa, e quem sofreria mais com isso seria o povo brasileiro e o nosso ambiente de um modo geral. Não quem está lá longe, distante dos rios poluídos, da fumaça, das queimadas. Para não falar do exército de refugiados, expulsos do campo para as periferias das grandes cidades. Temos que lembrar ainda que, caso haja este aumento excessivo na produção de etanol de cana-de-açúcar, só há duas saídas. A primeira, que já vem ocorrendo, é a substituição de outras culturas por cana, o que pode levar a um aumento no preço dos alimentos. A outra é o desmatamento e a ocupação de novas áreas - entenda-se cerrado e Amazônia.

 

FS: Por que as palmeiras seriam uma melhor opção para os biocombustíveis?

 

RS: Das palmeiras podem-se extrair diversos produtos úteis. Por exemplo, pode produzir-se carvão, um combustível extremamente importante. O carvão produzido a partir da concha dura dos cocos é tão ou mais poderoso que o carvão mineral, pode ser utilizado em caldeiras, pode mover trens, navios, gerar eletricidade. Por outro lado, através do óleo das palmeiras, extraído de suas sementes, pode-se produzir biodiesel para motores, como de trator e de caminhão.

 

Sou contra a expansão da cultura da cana-de-açúcar principalmente por causa da degradação ambiental na escala local. Já com as palmeiras acontece exatamente o contrário, porque elas têm o poder de recuperar áreas degradadas, ao invés de degradar áreas boas. Como não se trata de uma cultura anual, abre espaço para a sucessão ecológica. Além do mais, palmeiras são extremamente produtivas. Você vê, nas florestas tropicais, elas constituem a principal fonte de alimento para a fauna; a alta produtividade é uma característica natural da sua família. A capacidade fotossintética de qualquer planta é proporcional à área de suas folhas.

 

Então, uma palmeira estabelecida já tem aquela dimensão toda que permite a ela uma atividade fotossintética mais alta e destinada principalmente para a produção de frutos (de onde se extraem os biocombustíveis). Já no caso da cana-de-açúcar, depois de feita a colheita, a cultura toda vai ter que crescer novamente do zero e parte da energia absorvida terá que ser necessariamente investida na formação de sua estrutura - raízes, caule e folhas. Numa cultura já estabelecida, a palmeira vai usar toda aquela estrutura pra ter produção de frutos. Depois de um tempo sob culturas anuais, aquele solo que é periodicamente exposto ao sol e à erosão vai perder a fertilidade, vai ficar desgastado. Já as palmeiras permitem a recuperação do solo, através da recuperação do ambiente florestal.

 

No caso dos palmeirais, que são perenes, é claro que há maiores possibilidades de a fauna e a flora associadas se desenvolverem, se estabelecerem e manterem uma certa diversidade. Então, se você tiver uma produção de biocombustíveis de babaçú, nativa do Brasil, ou do dendê, que é uma palmeira exótica aqui, mas já muito usada no sudeste asiático, isso poderia ser uma alternativa fantástica.

 

FS: E como é obtido esse carvão, esse óleo?

 

RS: O carvão é evidentemente o mais simples. Ele pode ser produzido a partir dos frutos das palmeiras em fornos rústicos, como estes que queimam a mata nativa para a produção de ferro-gusa, poupando assim a floresta. E pode ser queimado diretamente. Já o óleo, para ser convertido em biodiesel, precisa ser tratado quimicamente, através de processos mais complexos que eu não saberia descrever, mas que não são nenhum mistério para a ciência.

 

FS: Com relação a essa produção do biocombustível a partir do óleo da palmeira ou do carvão da palmeira, você conhece algum projeto no Brasil que trabalhe essa implantação?

 

RS: Sim, existem alguns projetos. Na Amazônia, a Embrapa está apoiando a construção de alguns geradores de energia elétrica a partir do óleo das palmeiras, desenvolvendo a tecnologia necessária para o seu aproveitamento. É claro que a gente pode avançar cada vez mais investindo em pesquisas, e refinar esse conhecimento, mas, com o que a gente já tem, é suficiente para produzir muito. Dá, na verdade, para assumir a liderança mundial neste setor. E também já temos inclusive alguns exemplos isolados de empresas aqui no Pará produzindo óleo a partir das palmeiras para a produção de biodiesel.

 

Mas esta produção acontece numa escala pequena e ainda não é economicamente ou ecologicamente relevante na escala amazônica. Como argumentei no artigo, é aquele tipo de iniciativa que tem imenso potencial, mas que é lamentavelmente subestimado e teria muito a ganhar com o apoio do governo federal, através da Embrapa e do BNDES, além das iniciativas privadas. No caso das palmeiras, o principal entrave não é científico nem tecnológico, mas a ausência de incentivos apropriados ao setor. Também é um entrave cultural, pois o país está habituado tanto à cana quanto ao desmatamento para a produção, não havendo uma cultura de recuperação inteligente de áreas, nem por parte do governo, nem por parte dos latifundiários e empresários agrícolas, nem por parte dos pequenos produtores e dos movimentos sociais dos sem-terra.

 

FS: Então, com relação àquela afirmação dos ambientalistas, que criticam o cultivo do etanol por verem que ele vai ocupar o espaço de outros cultivos, esse risco não existiria no caso da palmeira... ou existiria?

 

RS: O cultivo de palmeiras para a produção de biocombustíveis ainda é uma coisa inexpressiva no Brasil. Temos altas densidades de palmeiras nativas, que se desenvolveram naturalmente em áreas desmatadas, claramente associadas ao histórico de ocupação humana nos locais mais antigos de colonização da Amazônia, como no estado do Maranhão, constituindo a “Zona dos Cocais”. As mulheres quebradeiras de coco do Maranhão, que persistem apesar de toda obstrução do acesso às palmeiras pelos fazendeiros e a destruição dos palmeirais daquela região, são a prova de que este potencial natural é relevante. Mas praticamente não se fala em projetos de multiplicação intencional dos palmeirais nas áreas degradadas ou de floresta nativa, como vem acontecendo no sudeste asiático.

 

O problema é que, para uma palmeira começar a dar frutos, crescer, ficar produtiva, são necessários vários anos, talvez mais de uma década, dependendo da espécie de interesse, e esse horizonte não é compatível com a visão do nosso empresariado, acostumado a replantar e colher a soja até mais de uma vez no mesmo ano.

 

FS: O que ainda falta ser feito para que haja essa implantação efetiva das fontes renováveis aqui no Brasil?

 

RS: A questão técnica não é problema. Tem muita gente fazendo pesquisa e resolvendo todos os possíveis problemas técnicos. O que falta é vontade política. Falta é mudar a mentalidade do governo, que precisa investir nestes recursos de uma forma ambientalmente mais adequada. A cabeça do empresariado também precisa mudar. A sociedade precisa pressionar os fazendeiros para que sejam efetivamente responsáveis pela preservação de suas terras. Se isso acontecer, a opção pelas palmeiras em detrimento da cana-de-açúcar vai ser natural, porque a cana significaria prejuízos na forma de multas decorrentes da erosão do solo, da extinção de espécies etc. Para isso basta aplicar as leis existentes, como aquela do valor social da terra ou a obrigação da integridade das reservas legais. Então, o que falta é o povo pressionar o governo para que as leis ambientais sejam cumpridas

 

 

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