Auto-engano

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Danilo Pretti Di Giorgi
06/10/2008

 

Os estudiosos da mente humana já nos alertaram muitas vezes para a perigosa armadilha do auto-engano, que ocorre em maior ou menor grau com todos nós. Da profunda sabedoria dos ditos populares temos "o pior cego é o que não quer ver". Nas poesias de Renato Russo é possível garimpar que "mentir para si mesmo é sempre a pior mentira".

 

Em alguns casos, as raízes do auto-engano estão tão ardilmente escondidas dentro dos nossos infinitos labirintos interiores que se tornam quase imperceptíveis e muito difíceis de serem trazidas à luz. Em outros o problema é escancarado, ao menos para quem vê de fora. O exemplo mais clássico é o do cônjuge traído que é o "único que não sabe" (finge não saber) da infidelidade de que é vítima, apesar das evidências.

 

Com a questão ambiental, a sociedade como um todo parece estar sendo vítima de um surto generalizado de auto-engano. Um bom exemplo é o conteúdo do caderno ‘Mais!’, editado pela Folha de São Paulo e publicado no dia 21 de setembro. A primeira página, bonita como de costume, traz, em letras grandes: "O Mundo em 2050". O jornal convidou sete especialistas para "projetar o cenário geopolítico do planeta" no futuro, sob o ponto de vista econômico. Os textos, assinados por acadêmicos das maiores universidades brasileiras, fazem previsões de como estará o mundo daqui a 42 anos e foram divididos em sessões com informações paralelas referentes aos principais grupos geopolíticos.

 

Comecei a ler o suplemento esperando encontrar ali muitas referências à questão das mudanças climáticas, talvez até mesmo páginas inteiras dedicadas ao assunto. Esperava ainda que o tema fosse tratado com profundidade, dominando mesmo o foco dos artigos, uma vez que me parece ser impossível separar a questão ecológica da questão econômica. O futuro da economia dos países é absolutamente dependente da forma como vamos lidar com as limitações impostas pela questão climática.

 

Terminei a leitura surpreso com o fato de não ter encontrado virtualmente nada ligado à questão do aquecimento global. Referências rasas ao tema em apenas um artigo, e ainda assim de passagem, limitadas aos efeitos da redução do acesso à água na África. Nada sobre seus efeitos no resto do mundo.

 

Como explicar tal fato a não ser pela teoria do auto-engano? Que leitura pode ser feita a não ser a de que estamos evitando encarar o problema, apesar de que, para onde quer que olhemos, vemos sua cara feia? Não esperava necessariamente ler nos textos do suplemento previsões catastróficas, mas é inaceitável que a questão climática não tenha sido sequer citada com a seriedade que merece, dada sua magnitude e sua potencial influência no futuro das economias. Qualquer estudo sério nesse sentido precisa considerar as possibilidades de alterações na agricultura, aprofundamento do drama da fome, crescimento nas migrações, guerras e catástrofes naturais que o aquecimento global pode causar.

 

Afinal de contas, 2050 é exatamente a data definida em reunião recente do G8 para reduzir as emissões de CO2 em 50% (sabemos o quanto este tipo de declaração conjunta dos países mais poderosos tem de retórica vazia, mas, enfim, nem mesmo eles foram tão longe a ponto de ignorar a questão). A data simbólica também apareceu muitas vezes nos ultimamente tão esquecidos textos do IPCC (o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU), que, no ano passado, geraram muita polêmica com suas previsões catastróficas para o futuro em caso de manutenção dos níveis atuais de emissão de poluentes.

 

Seria aceitável que os textos contestassem os estudos que indicam a necessidade de mudança radical nos rumos da economia. Entenderíamos que os acadêmicos afirmassem acreditar no surgimento, nas próximas décadas, de tecnologias hoje inimagináveis para eliminar o gás carbônico da atmosfera, que questionassem os cientistas e seus números, reduzindo assim o peso da questão climática para o futuro da economia. Que fossem até mesmo excessivamente pessimistas, aceitando que os países não farão muita coisa. Tudo isso seria mais fácil de entender. Mas o maior jornal do país, ao se propor a realizar um exercício de futurologia para o estado das sociedades em 2050, simplesmente ignorar a questão das mudanças climáticas é um triste indicativo da nossa dificuldade em aceitar a realidade que está aí para quem quiser ver: já passou da hora de partirmos com firmeza em busca de caminhos alternativos e deixarmos de concentrar esforços em atividades comprovadamente nocivas ao futuro da humanidade, como extração de petróleo em alto-mar e construção de usinas hidrelétricas que vão afetar o curso dos últimos grandes rios brasileiros ainda intactos.

 

Danilo Pretti Di Giorgi é jornalista

 

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