Correio da Cidadania

Rodovias na floresta

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Nas últimas duas semanas, durante uma expedição que fiz ao oeste do Pará, pensei um bocado sobre um pequeno trecho da recente entrevista da professora Maria da Conceição Tavares à revista Desafios do Desenvolvimento (publicação mensal do IPEA e do PNUD), relativo à pavimentação de estradas na região. Perguntada sobre a possibilidade de “impedir coisas como a rodovia BR-163”, a professora respondeu que “não tem como parar aquilo”, “se parar, quebra aquela área inteira”, e que “a questão é não desmatar demais”. Como se trata de alguém por quem tenho a maior admiração, a resposta da professora não me saiu da cabeça. Ainda mais que foi uma das últimas coisas que li antes de sair e estivemos alojados por boa parte do tempo justamente às margens das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém.

 

“Se parar, quebra aquela área inteira”, era o que eu mais me lembrava.

 

Transamazônica (BR-230)

 

De Santarém, seguimos (eu e um assistente de campo local) de barco, viajando por uma noite inteira rio Tapajós acima, até a cidade de Itaituba, rumo ao Parque Nacional da Amazônia. O parque, de quase um milhão de hectares, à beira do rio Tapajós, foi criado na época da abertura da Transamazônica (no início dos anos 70) pelo Programa de Integração Nacional do Governo Federal. Nossa missão era fazer um censo de palmeiras em uma trilha de 5 km em uma mata preservada da região (lá serão desenvolvidos vários outros estudos paralelos da fauna e da flora). Itaituba foi, nos anos 80, a capital do garimpo de ouro na Amazônia e seu aeroporto chegou a ser “o mais movimentado do Brasil”, segundo relatos dos habitantes da região. Dizem que tinha garimpeiro que tirava até dois quilos de ouro por dia. Investiu-se pesado em fazendas, aviões e desmatamentos, muitos desmatamentos, pois eles eram, em última instância, a garantia da posse da terra. Esgotados os garimpos, é esta a economia, a economia dos ex-garimpeiros e seus descendentes, ou, mais provavelmente, dos comerciantes que cresceram na região naquele período, que localmente poderia quebrar com o não-asfaltamento das estradas. Na verdade, acho que nem isso, porque, depois da febre do ouro, ficou por lá apenas o que era necessário para o abastecimento local.

 

Da base do IBAMA, onde ficamos no Parque Nacional da Amazônia, no município de Itaituba, ouve-se o chiado forte e distante das cachoeiras no rio Tapajós, que pode ser admirado de um mirante a poucos metros do alojamento. Um rio cheio de energia que ainda corre naturalmente, coisa cada vez mais rara no Brasil. Cedo, indo para o campo, era difícil acreditar que aquela estrada de terra onde estávamos era a famosa rodovia Transamazônica. Lembrava-me aquela cena da “Caravana Rolidei”, em Bye Bye Brasil (filme de Carlos Diegues), nos anos 1970, cruzando a mata ainda virgem ao longo da estrada “recém cortada” (ao som da música tema de Chico Buarque), perseguindo a terra “onde o abacaxi é do tamanho de uma jaca, as árvores são como arranha-céus, e as pedras preciosas brotam do chão”.

 

Hoje, a Transamazônica, em sua maior parte, não tem mais aquele aspecto, pois os desmatamentos já lhe descaracterizaram, espalhando-se por ramais e sub-ramais, que vistos do espaço têm o aspecto de espinhas de peixe. Mas, na verdade, na altura do Parque Nacional da Amazônia, a rodovia está hoje ainda mais estreita que originalmente. Ali, metade da largura da faixa desmatada foi retomada por uma vegetação secundária, rica em palmeiras babaçu (evidência de que, dadas as condições necessárias, com o tempo, a mata pode voltar naturalmente, e ainda produzir matérias-primas importantes como alimentos e biodiesel). A poucos metros da Transamazônica, dentro do parque, a mata ainda está perfeitamente preservada, com buritizais repletos de pegadas de antas, onças e porcos-do-mato, além de árvores de madeiras de lei de todo o tamanho, maravilhosamente intocadas.

 

O trânsito de veículos por lá é impressionantemente baixo. Em um dia todo de trabalho, das 8 às 17 horas, o motorista que nos levava até as proximidades da trilha de amostragem contou a passagem de apenas oito veículos. Nos dois sentidos! Ao longo da estrada não há filas de caminhões com a produção estragando, esperando para poder passar por lamaceiros ou pontes quebradas, como estamos acostumados a ver na televisão. A verdade é que não há um fluxo de mercadorias e matérias-primas entre Patos, na Paraíba, e Humaitá, no Amazonas, que torne a rodovia Transamazônica necessária para a economia do país e não consigo imaginar exatamente o que quebraria com o não-asfaltamento daquela estrada, especificamente.

 

Cuiabá-Santarém (BR-163)

 

Chegando em Santarém, de cara, sabe-se que se está no coração de um forte embate ambiental, quando se vê o imenso porto graneleiro da Cargill à beira do rio Tapajós, que o Greenpeace, com seus espetáculos midiáticos, conseguiu transformar em um símbolo da devastação ambiental. O motorista de táxi que me levou até ali entregou logo que os ativistas do Greenpeace não moram na região. Chegam, fazem o protesto, filmam, tiram as fotos e vão embora. Na última incursão deram sorte, pois, tentando pichar o porto, foram retirados à força e registraram as cenas, o que gerou grande repercussão internacional. Parece que agora o plano da Cargill é deixar pichar, e passar uma demão de tinta quando os manifestantes cansarem e saírem.

 

Mesmo com todo o seu isolamento rodoviário, ligada ao resto do mundo apenas por 900 km não-asfaltados da BR-163, Santarém é uma cidade efervescente. Segundo o jornal O Estado do Tapajós, em 2007, o Produto Interno Bruto (PIB) do município aumentou consideravelmente em relação ao ano anterior, e a construção civil teve um salto de 100%. Aquela região definitivamente não passa por uma crise econômica. Com anos melhores, e outros nem tanto, os sojicultores do Mato Grosso também não estão quebrando. Sem o asfaltamento da Cuiabá-Santarém, quem poderia quebrar mesmo são aqueles fazendeiros de lugares como Novo Progresso (bem no meio da BR), que investiram pesado nos desmatamentos e não conseguiriam viabilizar a produção nestas áreas desmatadas. Mas, se estes que investiram desrespeitando as leis ambientais tiverem que quebrar, que quebrem.

 

Quando cheguei em Santarém, colonos agricultores planejavam uma manifestação interditando a BR-163, segundo noticiou o jornal O Estado do Tapajós. Exigiam explicações do 8º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército (que está encarregado das obras na estrada), sobre a paralisação dos trabalhos. Aparentemente, era uma manifestação pelo asfaltamento, e ao governo e parte da imprensa interessa que assim pareça. Mas uma declaração de um agricultor, citado no referido jornal, sugeriu-me uma explicação alternativa: “estamos revoltados, pois não asfaltam nada e [com as máquinas paradas aguardando financiamento ou autorização para asfaltar] nem sequer deram uma melhorada no trecho”. Imagino que o governo poderia facilmente estar mais empenhado em manter as boas condições da estrada – de chão -, deixando a BR-163 em condições excelentes para o trânsito da população e da produção local, ao invés de esforçar-se tanto no asfaltamento em si (que realmente interessa às grandes empreiteiras), largando a manutenção da estrada não-pavimentada de lado. Além do que, com a chuva que cai lá, mais o calor e a qualidade péssima do asfalto que se usa no Brasil, em poucos anos pode estar muito pior do que está, pois o asfalto detonado é pior para andar do que estrada de terra.

 

A simples confirmação de que o governo de Lula iria concluir os trabalhos de pavimentação das rodovias bastou para alavancar o desmatamento ao longo dos trechos mais preservados da BR-163. Isso porque o asfaltamento é uma garantia para que se possa desmatar e escoar durante o ano todo, competitivamente, a madeira retirada, a carne e a soja produzidas nessas áreas ainda remotas devido ao estado atual da estrada. Diferentemente do asfalto, a estrada de terra tem a vantagem de que pode ser facilmente mantida em ótimas condições a um custo relativamente baixo.

 

Além do mais, se é para investir em asfalto, por que não recuperam a rodovia Belém-Brasília, há muito pavimentada, mas hoje coalhada de buracos? Ali sim, muitos negócios quebram, e eixos de caminhão também, por falta de asfalto decente. Mas não se ouve falar nas obras de “re-asfaltamento” da Belém-Brasília. Porque a pavimentação da BR-163 não é necessária para a sua área de influencia não quebrar, mas sim para possibilitar a exportação da soja do Centro-Oeste pelo norte, através do rio Amazonas, com maior lucratividade. Com o não-asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém, na verdade, o que poderia quebrar são as contas do governo, dependentes do agronegócio exportador. Se, para manter estas contas equilibradas por mais alguns anos, o preço for a devastação da floresta (o que, de resto, provavelmente trará graves conseqüências econômicas ao resto do país, devido a alterações no regime de chuvas), que se quebrem as contas. Eu sei que é ingênuo falar assim, mas dizer, como a professora, que é preciso asfaltar, sendo a questão “não desmatar demais”, também o é.

 

***

 

Concluída a viagem, e voltando à entrevista da professora Conceição para redigir este relato, reparei como o entrevistador da revista Desafios foi bastante impreciso em sua pergunta: “É possível impedir coisas como a rodovia BR-163?”. De cara entendi que ele se referia à “pavimentação” da Cuiabá-Santarém, porque a rodovia em si evidentemente não tem como ser “impedida”, pois é concreta. Tem gente morando e trabalhando por ali com motivos perfeitamente legítimos para circular. Então, realmente, a resposta não poderia ser outra: “Não tem como parar aquilo”. Por mais convicto que eu seja quanto aos danos ambientais causados pelas estradas na Amazônia, e preocupado com as suas conseqüências, em nenhum momento enquanto estive ali me ocorreu que, bloqueando uma ponte ou arrastando galhos de árvores para o leito da estrada, eu estaria fazendo algum bem pelo meio ambiente. Então não é uma questão de “impedir a estrada”. Mas por que a pressa, agora, em asfaltá-la? Assim como Conceição diz tão acertadamente, quanto à possibilidade de o Brasil tornar-se exportador de petróleo, esperar que não seja para tão cedo, “porque seria um disparate entrar nessa agora”, penso o mesmo em relação à conclusão da pavimentação das rodovias que cortam a floresta amazônica.

 

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

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