Correio da Cidadania

Palestina e Israel: “um Estado binacional com direitos iguais para todos é a solução mais viável”

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O aniversário de 70 anos do Estado de Israel divide a humanidade como poucos temas. Atualmente, falamos de um Estado cuja potência militar tem poucos similares e impõe suas políticas expansionistas como quer. A disparidade de forças foi novamente escancarada nas chamadas Marchas do Retorno dos palestinos, cuja repressão gerou mais de 100 mortes. Sobre isso e também a transferência da embaixada dos Estados unidos para Jerusalém, conversamos com Reginaldo Nasser e Bruno Huberman, estudiosos do tema no departamento de Relações Internacionais da PUC-SP.

“Trump veio a demonstrar de forma clara aquilo que se encobria desde o presidente Carter nos anos 70, qual seja, completa perda de credibilidade dos norte-americanos enquanto mediadores do processo de paz em mais uma demonstração de apoio irrestrito aos interesses israelenses, colocando-se longe do equilíbrio que um mediador supostamente deveria ter, ainda mais em uma situação de assimetria de poder como a de Israel-Palestina”, explicaram eles, que responderam a esta entrevista em conjunto.

Neste sentido, ambos consideram a tese dos dois Estados praticamente morta, dado que Israel avança rumo a condições de completa irreversibilidade do êxodo e, não menos importante, do crescente apartheid político, jurídico e institucional, o que também complica a possibilidade de um Estado binacional com direitos igualitários entre árabes e judeus.

“Quaisquer sejam os parâmetros de uma nova negociação de paz entre Israel e palestinos, é preciso ficar atento para que não se revelem como uma nova farsa, tal qual foram os Acordos de Oslo, que possibilitaram a manutenção da colonização sionista da Palestina nas últimas décadas. Acreditamos que a adoção do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) pelos movimentos sociais no mundo inteiro é um caminho promissor. Esta aí o exemplo do apartheid na África do Sul”, pontuaram.

Reginaldo Nasser é professor do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e pesquisador do INEU (Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA); Bruno Humernan é Mestre e Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas. A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como classificar os últimos eventos que marcaram a luta por independência da Palestina, a partir da marcha do retorno em memória aos 70 anos da chamada Nakba, e a repressão israelense?

Reginaldo Nasser e Bruno Huberman: Massacre. O que tem sido promovido em Gaza, desde o seu completo isolamento por Israel em 2005, onde ninguém entra nem sai, é a continuidade da política de extermínio promovida por Israel desde 1948, quando foi promovida uma limpeza étnica dos palestinos por milícias sionistas por meio de expulsões sistemáticas, destruições de vilarejos e massacres.

Nesses últimos 70 anos, diversos massacres foram cometidos contra os palestinos, com destaque para o ataque à Gaza de 2014, quando foram mortos mais de 2.000 palestinos, e de Sabra e Shatila, no Líbano, em 1982.   

Como analisam a transferência da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém? Que consequências devem advir dessa atitude do governo Trump?

É mais um importante passo do governo dos EUA de reconhecimento das conquistas coloniais israelenses em desacordo com as determinações da lei internacional e, possivelmente, uma pá de cal nas negociações entre Israel e os palestinos no famigerado processo de paz.

Entretanto, a ocupação de Jerusalém já vem acontecendo faz algum tempo. O simbolismo da mudança reflete realidade mais dura. Trump veio a demonstrar de forma clara aquilo que se encobria desde o presidente Carter nos anos 70, qual seja, completa perda de credibilidade dos norte-americanos enquanto mediadores do processo de paz em mais uma demonstração de apoio irrestrito aos interesses israelenses, colocando-se longe do equilíbrio que um mediador supostamente deveria ter, ainda mais em uma situação de assimetria de poder como a de Israel-Palestina.  

Como vocês veem a repercussão internacional para o Estado de Israel? Acredita que haverá perdas efetivas para o governo Netanyahu?

Esses acontecimentos recentes podem revelar-se, ao cabo, um tiro pela culatra. Em uma tentativa de demonstrar força e união, Israel e EUA vão se isolando cada vez mais, como demonstram as recentes vitórias do movimento de BDS (Boicote, Desinvestimentos e Sanções) a Israel, com destaque para o cancelamento dos shows do Gilberto Gil e da Shakira, do amistoso da Argentina e da premiação da atriz Natalie Portman. As conquistas têm sido cada vez mais frequentes e significativas, o que pode minar Netanyahu internamente.

Quais os caldos culturais, por assim dizer, que percorrem a sociedade israelense na atualidade?     

A sociedade israelense passa, nos últimos anos, por um processo de ‘direitização’, na qual a antiga esquerda trabalhista, líder do ‘campo da paz’ dos Acordos de Oslo, tem perdido cada vez mais espaço para grupos de direita. A cada eleição, a coalizão governamental israelense torna-se mais conservadora, formada por políticos nacionalistas, religiosos, xenófobos e racistas.

O processo é tal que Netanyahu, quando eleito em 2009, era um importante líder da direita e altamente criticado por suas posições conservadoras, mas nos últimos anos tem se tornado um político moderado em relação aos seus pares e cada vez mais criticado por movimentos à sua direita, que desejam, por exemplo, anexar os Territórios Palestinos Ocupados (TPO) e escancarar o apartheid.

Falando nisso, é possível negar o apartheid, inclusive com aval político-institucional, no país?

Apartheid tornou-se uma tipologia da legislação internacional para enquadrar crimes de segregação étnico-racial, tais quais vistos na África do Sul até os anos 1990. Como dizem os acadêmicos israelenses Ariella Azoulay e Adi Ophir, nós temos uma condição de um Estado em Israel-Palestina, na qual para a maior parte da população, formada por cerca de 6 milhões de palestinos que vivem nos TPO, são negados qualquer direito e cidadania.

Portanto, é inegável o apartheid. Pela fragmentação promovida pelos israelenses, nós temos na Palestina diversas formas de segregação. Nos TPO, nós temos um apartheid mais escancarado, com o Muro, checkpoints, cercas etc. Em Jerusalém, um meio termo, onde os palestinos são residentes: têm mais liberdade de ir e vir, mas não possuem diversos direitos, como votar na eleição nacional.

Já entre os palestinos cidadãos de Israel, há um apartheid mais oculto, a partir da vontade de assimilar essas habitantes, mas que por vezes fica mais aberto, como nas medidas de expulsão dos palestinos habitantes do deserto do Negev/Naqab, no sul de Israel, expulsos para a construção de um novo assentamento exclusivamente para judeus. Isso não se dá nos TPO, mas dentro de Israel, em pleno 2018.

Portanto, o apartheid na Palestina é em todo o território, mas com suas diferenças.

Enxergam viabilidade na tese dos dois Estados? Tal ideia é cabível sem uma confrontação ao sionismo e sua doutrina?

Cada vez mais, a solução de dois Estados é inviável. Com cerca de um milhão de colonos judeus vivendo nos TPO, criar um Estado palestino e soberano nas fronteiras de 1967 é cada vez mais difícil. Ademais, a solução de dois Estados não respeita o direito de retorno dos refugiados palestinos de 1948, tampouco busca pôr fim na segregação imposta aos palestinos cidadãos de Israel.

No entanto, o sionismo, tal qual estabelecido historicamente, preconiza um Estado com maioria judaica para viabilizar a autodeterminação dos judeus. Logo, é muito difícil que os israelenses abram mão da maioria demográfica e se avance para a solução de um Estado binacional com direitos iguais para todos, que seria a solução mais justa e viável, por meio de negociações da forma como foram feitas até o momento.

Sobre o sionismo, não se trata de um aspecto negligenciado nos fóruns internacionais e seus debates?

Em 1975, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução que equiparava o sionismo como uma forma de racismo e discriminação racial, inclusive com o voto brasileiro, no contexto de aproximação com o Iraque e da crise do petróleo no governo Geisel. Essa resolução foi retirada por uma iniciativa brasileira, entre outras nações, em 1991, no governo Collor. Apesar dessas disputas e debates, os fóruns internacionais mostram-se irrelevantes para a questão Palestina, enquanto os desdobramentos relevantes, como os Acordos de Oslo dos anos 1990 passaram ao largo das instâncias multilaterais, como a ONU.

Há, de forma geral, um sentimento entre israelenses de que a ONU é uma instituição anti-Israel e pró-árabe, ignorando o fato que a partilha da Palestina, em 1947, foi uma imposição da ONU e acatada pelo movimento sionista na Palestina, criando o Estado de Israel. Desde então, foram aprovadas inúmeras resoluções condenando ações coloniais de Israel, que é um contumaz violador de leis internacionais, mas nenhuma ainda mostrou-se capaz de deter as ambições coloniais israelenses pela proteção dos EUA, que possui poder de veto no Conselho de Segurança da ONU.

Apesar disso, o sionismo e as reivindicações de autodeterminação judaica são legítimas, embora, na prática, a sua realização signifique a opressão dos palestinos.  

Como enxergam a questão palestina ao lado da guerra da Síria em termos de disputas geopolíticas na região?

De certa forma, a questão Palestina foi ocultada pelos desdobramentos da Primavera Árabe, entre eles a guerra da Síria, que resultou no surgimento do Estado Islâmico (EI) e na maior presença das potências internacionais na região. A catástrofe síria, atualmente, equipara-se à catástrofe palestina de 1948, sendo as duas as maiores populações refugiadas do mundo.

Ademais, as turbulências no Oriente Médio ajudam Israel a manter sua retórica e ações belicistas, o que permite oprimir e massacrar os palestinos impunemente. Por outro lado, essas diásporas globais ajudam na construção de solidariedade internacional em favor das reinvindicações locais de palestinos e sírios.

Considerando o contexto regional de forma mais ampla, quais acontecimentos mais relevantes podemos esperar?

É difícil esperar, no curto e médio prazo, algo que fuja muito do status quo enquanto os mesmos atores continuarem conduzindo o processo político. No entanto, os conflitos podem vir a demover tanto o israelense Netanyahu como o palestino Mahmoud Abbas do poder, além do norte-americano Donald Trump, o que pode trazer alterações. A caminhada de Israel para a direita pode aumentar a pressão internacional sobre os israelenses por uma solução para a questão Palestina.

No entanto, quaisquer sejam os parâmetros de uma nova negociação de paz entre Israel e palestinos, é preciso ficar atento para que não se revelem como uma nova farsa, tal qual foram os Acordos de Oslo, que possibilitaram a manutenção da colonização sionista da Palestina nas últimas décadas. Acreditamos que a adoção do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) pelos movimentos sociais no mundo inteiro é um caminho promissor. Esta aí o exemplo do apartheid na África do Sul.

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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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