Correio da Cidadania

Potências e limites das manifestações

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Análise | Junho de 2013 não foi um 7 a 1 | Opinião
Em 2003, milhões de pessoas foram às ruas de muitas cidades do mundo para protestar contra a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, forjada com o falso argumento da existência de armas de destruição em massa. Naquele mesmo ano, um artigo no The New York Times destacava que a opinião pública global havia se tornado a “segunda superpotência”.

Duas décadas depois, as coisas mudaram drasticamente: 3,5 milhões de manifestantes nas ruas da França, que representam os dois terços que se opõem à reforma da previdência, não conseguiram impedir que acabasse imposta pelo governo, que passou por cima da opinião pública e do parlamento.

No Peru, ocorreram 1.327 protestos, entre 7 de dezembro de 2022 e 20 de fevereiro de 2023, entre mobilizações, paralisações e ocupações, informa a Defensoria do Povo. Também foram registrados 145 pontos de bloqueio, 15 delegacias foram danificadas e cinco aeroportos tomados, além de um número indeterminado de pequenas ações. Apesar desta gigantesca energia coletiva, a presidente Dina Boluarte permanece no governo, apoiada pelas forças armadas e policiais que mataram mais de 60 pessoas.

Nos últimos anos, houve revoltas no Equador, Chile, Nicarágua, Colômbia e Haiti, mas o neoliberalismo continua reinando em toda a região, porque a energia coletiva nas ruas é canalizada para as urnas.

As perguntas se acumulam. A manifestação e o protesto já perderam sua capacidade transformadora e destituinte? O filósofo e psicanalista Miguel Benasayag lembra que no Maio de 1968, na França, havia muito menos pessoas nas ruas do que agora, mas o poder escutava o protesto e de alguma forma o atendia. Agora, o céu pode cair, sem que haja respostas lá de cima.

No momento atual, ao menos três coisas mudaram.

A primeira é que o Estado-nação foi tomado pelo 1% mais rico, o capital financeiro e especulativo, para blindar seus interesses. Esta é uma mudança estrutural de longo prazo, ao menos até derrotarmos o capitalismo.

A segunda é que esse poder ultraconcentrado aprendeu a manipular os movimentos com pequenas concessões sob a forma de políticas sociais e o conjunto da opinião pública através dos grandes meios de comunicação monopolizados.

A terceira é a que pretendo desenvolver brevemente, uma vez que as duas anteriores vêm sendo analisadas em diversos espaços. Trata-se de como o Estado está neutralizando a capacidade destituinte da luta das ruas, mediante formas de repressão muito poderosas, mas, ao mesmo tempo, novas e menos estridentes do que as balas de chumbo.

Uma delas é o dispositivo acústico de longo alcance (LRAD), denunciado por Eva Golinger, em 2009, que são “sirenes capazes de 'torturar' o ouvido humano, com um alcance acima de 500 metros”. Trata-se de uma “guerra sônica” capaz de dispersar manifestações com granadas de atordoamento.

Venom é uma arma usada pelo batalhão de choque na Colômbia (como parte dos arsenais mal denominados “menos letais”), composta por 30 tubos que lançam projéteis simultâneos capazes de “disseminar grandes quantidades de substâncias químicas irritantes, em uma vasta área, quase instantaneamente”. A arma foi denunciada por organizações de direitos humanos, incluindo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

As balas de borracha merecem tratamento à parte, pois causaram milhares de mutilações e lesões oculares, sobretudo no Chile, além de outros danos físicos e dezenas de mortes. A Anistia Internacional e a Fundação Ômega pedem um tratado internacional que proíba o comércio e o uso de balas de borracha.

Na Organização das Nações Unidas, houve a apresentação de um documento da relatora especial para a promoção dos direitos humanos, Fionnuala Ní Aoláin, que denuncia “a adoção de tecnologias de alto risco e altamente intrusivas, como as tecnologias biométricas, inteligência artificial (IA), a vigilância com software espião e drones”.

O leque de formas repressivas que vão de tiros de fuzil e a introdução de provocadores até o uso de dados biométricos, passando por assassinatos seletivos camuflados como “mortes extrajudiciais” ou atribuíveis ao narcotráfico (que em alguns lugares já chamamos de polinarcotraficantes), ampliam exponencialmente a capacidade dos Estados em neutralizar o protesto.

Continuaremos comparecendo às manifestações e protestando. Busco advertir que não basta protestar, precisamos reequilibrar nossas energias. Devemos nos dedicar, dia a dia, a construir nossos mundos novos, diferentes e autônomos, porque o sistema encontrou meios de neutralizar as ruas para evitar a destituição de seus governos.

Raúl Zibechi é jornalista e cientista político uruguaio.
Tradução pelo CEPAT.

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