Correio da Cidadania

Greves, neoliberalismo de Estado e terrorismo de direita: um caso para estudo

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Ministro Tarcísio Freitas (esq.) e diretor-presidente da CCR ViaSul Fausto Camilotti, em ato em Brasília na segunda (17)
Tarcisio e Fausto Camilotti, diretor-presidente da CCR, detentora da Via Mobilidade, em encontro em Brasília em 2021. 
Foto: Divulgação CCR

Com uma tímida compensação das perdas acumuladas em anos, a greve do metrô de São Paulo foi encerrada em 24 de março. Mas, para além de analisar mais esta mediação estatal das lutas de classes trabalhadoras no Brasil, parece mais interessante atentar para aquilo que talvez seja a novidade do episódio: a sinergia entre um discurso terrorista de ultradireita e uma pauta privatizante defendida por agentes públicos, como o bolsonarista eleito governador de São Paulo.

Enquanto a greve paralisava a cidade, como não poderia deixar de ser nestas situações, e as negociações entre metroviários, metrô e governo do estado esbarravam na truculência de Tarcísio Gomes, um diferente modus operandi se apresentou nas redes sociais no sentido de intimidar as lideranças da greve.

“Os seguidores dessa direita promoveram uma série de ataques, na sede de sindicato, nas redes sociais dos dirigentes, ameaças diretas contra nossas vidas. Fizeram prints de nossas páginas de redes e circularam em diversos grupos, me difamando, com associações sem sentido. Sou filiada ao PSOL mesmo, conheço Guilherme Boulos, mas os metroviários são uma categoria organizada, quem decide e vota pelas coisas como uma greve são os metroviários. Fizeram ataques com conteúdo político e em favor da privatização, um discurso muito parecido com o de Tarcísio desde que assumiu o governo do Estado. E o discurso de ódio e ameaças da extrema-direita nas redes sociais era muito semelhante ao discurso político do governo. Recebi três ameaças de morte em mensagens particulares no Instagram”, explicou Camila Lisboa, atual presidente do Sindicato dos Metroviários, numa entrevista coletiva feita por internet na terça, 28.

Ela e a diretoria da entidade protocolaram BO na Delegacia de Crimes Cibernéticos e o caso, desde então, saiu das manchetes. Resta saber se as lutas sociais que continuarão a marcar a cidade, o estado e o país voltarão a registrar este novo tipo de militância reacionária, uma óbvia repercussão dos anos de Bolsonaro no poder e das diversas tentativas de se estimular um golpe de Estado, com as quais convivemos nos últimos anos.

Como explicado por Camila Lisboa, greves, autoritarismo de direções de empresas – sejam públicas ou privadas – e má vontade de governantes em ouvir a pauta de reivindicações não são nenhuma novidade sob o sol do capitalismo. Que o diga a França, onde a mais revolucionária das democracias liberais observa o Estado subverter a legalidade em nome de mais uma dose de austeridade.

“Fizemos greves em 2021, 2020, 2019. Nessas greves e até nas anteriores já havia redes sociais, mas não havia a dinâmica de ameaça de morte. Pessoas da categoria que trabalham há mais tempo no metrô comentaram essa diferença também. Existem pessoas que não gostam ou sentem raiva de greve. Mas nada comparável. Não recebemos ameaças de usuários insatisfeitos do metrô. O discurso de ódio e ameaças estava associado ao discurso político do governador sobre privatização do transporte sobre trilhos. Não temos provas, mas houve movimentações características do gabinete do ódio, movimentações orquestradas. Não foi condizente com o que ouvimos de usuários que entenderam nossa proposta de catraca livre (apresentada pelos metroviários para fazer o metrô funcionar mesmo durante a greve). Não foi condizente com comentários de usuários de transporte que apoiaram a greve em rede sociais também. Houve dinâmica parecida com a de gabinete do ódio que operava em Brasília em favor de Bolsonaro”, ilustrou Camila.

Isto é, parece que São Paulo observa um bom exemplo de como os discursos de extrema-direita “contra o sistema” não passam da mais pura conversa mole, papo pra enganar desiludidos. Como mostram as reformas ultraliberais capitaneadas por Paulo Guedes e os variados discursos de apologia do livre mercado de Bolsonaro, a extrema-direita é apenas a face mais bruta do velho sistema. Sempre ao lado dos patrões, acionistas e pela hierarquia socioeconômica vigente. O governo Tarcísio e seu discurso de “privatização ou morte” apenas reforçam essa obviedade, como puderam aprender os caminhoneiros com o ex-ministro da Infraestrutura nos últimos anos de superlucros para os acionistas privados da Petrobrás “pós-corrupção”.

“A linha 9 da CPTM, recém-privatizada, começou a dar um monte de problema. Nunca teve isso sob gestão estatal, vagões desacoplados, trens descarrilados. Em 15 fevereiro teve uma falha que levou o dia todo pra ser resolvida. Antes não se via incapacidade de resolver as coisas imediatamente. O Ministério Público começou a cobrar a Via Mobilidade e o governador foi na TV abraçado com a diretoria da empresa, ficou xingando o MP. Na hora da nossa greve, foi na TV xingar trabalhadores”, recordou Camila Lisboa.

Resta saber por que um discurso dogmático e supostamente técnico agora precisa da mão visível dos fascistas para se impor diante da sociedade. Mas depois do experimento Temer e da aventura Bolsonaro, talvez reste claro que as políticas ultraliberais já não enganam o suficiente com suas ladainhas e promessas de “eficiência e boa gestão”. Talvez por serem exatamente pura e simples corrupção, mamata bancada pelo Estado de forma tão grosseira que só o autoritarismo desabrido pode fazer passar. A gritaria midiatizada dos mercados financeiros – antro de bolsonaristas – em relação ao governo Lula apenas reitera tal dinâmica.

E o modelo de privatização brasileiro, não só no transporte sobre trilhos de São Paulo, beira o escárnio. O Estado simplesmente prevê em contrato o lucro privado. E o financia. Como lembrou Camila Lisboa, “o governo dá dinheiro pra linhas privadas, mas não para públicas. A linha 4 amarela recebe 6 reais por passageiro. Na câmara de capitalização, a prioridade é das linhas 4, 5, agora 9, depois para as demais. É privatização do lucro, porque o Estado financia essas linhas privadas. É muito fácil falar em privatização com o Estado dando mais dinheiro para linhas privadas que públicas. Não existe isso no resto do mundo, em diversos países nada socialistas o governo subsidia o transporte porque é um direito. A linha 4 amarela é moderna? É tudo feito com dinheiro público, o contrato garante o lucro. Garante! Se não der lucro o Estado vai cobrir. Isso nem é privatização, é uma farsa”.

O governador Tarcísio de Freitas, em evento de apresentação dos novos trens da Linha Esmeralda
Tarcisio na apresentação dos novos trens da linha 9, ao lado da diretoria da CCR/Via Mobilidade, entre eles Camilotti, à esquerda
Foto: Divulgação

Explicando: o governo quer privatizar as linhas ainda estatais do metrô e o prejuízo financeiro dos últimos 3 anos, de pandemia e isolamento social, são o grande argumento. No entanto, como já mencionado, as linhas privadas não têm lucratividade garantida se operadas de forma independente. Mas aqui o Estado simplesmente se assume fiador e faz a conta fechar.

“Sabemos do impacto de uma greve, do peso do metrô numa cidade como São Paulo. Indicamos a catraca livre como mecanismo. Tarcísio voltou atrás, cancelou a catraca livre e voltou com uma proposta muito frágil, abaixo das nossas necessidades. Mesmo assim a diretoria defendeu a aceitação da proposta com fim da greve. Não pode ser que trabalhadores, de qualquer categoria, comecem a ser tratados como inimigos da sociedade. A pessoa pode discordar da nossa decisão de fazer uma greve, mas não do nosso direito de tomar essa decisão. Sabemos que esse discurso tomou conta do país, sabemos que o discurso de criminalizar greve e defender privatização faz coro com o programa do governo. Tarcísio precisa se pronunciar”, resumiu Camila.

Mas pode um modelo de negócios tão fraudulento como este – e um capitalismo financeiro tão dependente do assalto ao Estado, como se vê no caso federal – conviver com qualquer coisa que se pareça uma democracia? Serão o terrorismo e a ameaça fascista armas de chantagem que vieram para ficar em nossa vida cotidiana, sob a bênção dos mercados?

Do lado da classe trabalhadora, a única resposta possível parece ser a luta. “Assistimos diversas atitudes de perseguição, em relação a mim com conteúdo misógino e racista. Sabemos o que aconteceu com Marielle, sabemos que essas ameaças têm recaído mais sobre mulheres, negros, negras. Portanto, todos os que defendem as liberdades democráticas devem se pronunciar neste tema. Vamos brigar por reajuste na inflação, aumento real, porque é só reposição de perdas acumuladas em anos. A inflação é uma média, mas a de alimentos é muito maior do que os índices oficiais. E temos que ser respeitados. A indignação é justa, aumentou com as ameaças e não vamos deixar de fazer lutas”.

Com a palavra, o “outro lado”. Mas, passada uma semana do episódio, Tarcísio Gomes ainda não se pronunciou.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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