Correio da Cidadania

Condor, o filme

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“Às 18 horas do dia 5 de dezembro de 1973, meu pai Joaquim Pires Cerveira (...) se dirigiu a um encontro com seu companheiro de Organização (...) João Batista de Rita Pereda.

Atropelado e sequestrado com Pereda, no centro de Buenos Aires, pela Operação Condor, foram ambos entregues à ditadura brasileira.

Foi assassinado em 13 de janeiro de 1974 no DOI-Codi da Barão de Mesquita (RJ), tornando-se um desaparecido político.

Dali para frente, a vida se resumiu na busca da verdade e dos seus restos mortais”.

O depoimento é de Neusah Cerveira, jornalista, economista, geógrafa e historiadora.

Segundo ela, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Deops/SP, comandou pessoalmente o sequestro, com a colaboração de agentes da Polícia Federal e do Exército argentinos. Teria sido o pontapé inicial da Operação Condor, embora a formalização desse acordo de cooperação entre as ditaduras sul-americanas só haja ocorrido em 1975.

Enviado a São Paulo, Cerveira ficou à disposição do DOI-Codi, então chefiado por Carlos Alberto Brilhante Ustra.

E foi Ustra em pessoa que o entregou ao DOI-Codi/RJ, onde chegou numa ambulância, às 23h do dia 12. Durante a madrugada executaram-no; depois, deram sumiço nos seus restos mortais.

Conheci Cerveira em maio de 1970, no DOI-Codi/RJ. Quarentão, bondoso, esforçava-se por elevar o moral dos colegas de cela, cantando músicas de sua autoria.

 
Neusah: "busca da verdade e dos restos mortais"

Uma delas ficou para sempre na minha lembrança. Começava assim: "É bonito o anoitecer na praia,/ é bonito o anoitecer no mar./ Eu fui no mar, à tardinha,/ levar meu presente pra nossa rainha./ Ê, ê, é a rainha do mar,/ ah, ah, nossa mãe Iemanjá".

Por razões de segurança, não conversávamos sobre nossas respectivas militâncias. Soube depois que ele havia feito carreira militar, chegando a major; era gaúcho e vinha das hostes brizolistas.

Mal os golpistas de 1964 usurparam o poder, transferiram-no à reserva: ele foi um dos punidos pelo Ato Institucional nº 1.

Preso em outubro de 1965, acabou sendo em maio de 1967, inocentado da acusação de ter facilitado a fuga do coronel Jefferson Cardim Osório, pertencente ao Movimento Nacionalista Revolucionário.

Nova detenção em 1970, quando fomos colegas de infortúnio. Sua esposa e filho também sofreram maus tratos.

Minhas recordações, evidentemente, são nebulosas, tanto tempo depois. Mas, ficou-me a imagem de um homem do tipo caseiro, cuja aparência afável e inofensiva contrastava com a dos ex-militares da minha própria organização, a VPR; estes tinham ar decidido e pareciam sempre prontos para a ação.
 

Presos políticos trocados pelo embaixador alemão; Cerveira é o grisalho, na fileira do fundo.

Minha avaliação, face ao que fiquei sabendo depois, não estava longe da realidade. Cerveira, bom pai de família, poderia perfeitamente ter levado uma existência prosaica. Era a noção do dever, a fidelidade à causa revolucionária, que o forçava a enfrentar perigos e viver fugido.

Um dos 40 presos libertados quando do sequestro do embaixador alemão, viajou em junho de 1970 para a Argélia.

No Chile, participou em 1972 do julgamento de uma dirigente da VPR, acusada de pusilanimidade diante da repressão. Convenceu os demais julgadores de que, mesmo sendo ela culpada, revolucionários não deveriam matar revolucionários. Salvou-lhe a vida.

Sem a mínima ambição pessoal, com enorme idealismo e força moral, Cerveira foi um daqueles quadros que fizeram muita falta na redemocratização do país.
 

Cerveira na lista dos incinerados


Sequestrado em Buenos Aires, assassinado no DOI-COI e incinerado na usina Cambahyba

“Maria de Lourdes Pires Cerveira (...) conversou com o marido pela última vez em novembro de 1973, quando combinaram que a família se reuniria em Buenos Aires em janeiro de 1974. Joaquim deveria ter ligado para a casa em 10 de dezembro, data do aniversário da filha, mas não o fez.

No dia 3 de janeiro, a família recebeu um telefonema anônimo informando que Cerveira fora sequestrado na capital portenha quase um mês antes, mais precisamente no dia 5 de dezembro.

...O anfitrião de Joaquim Cerveira em Buenos Aires, de sobrenome Rossi, conta que no dia seguinte, 6 de dezembro de 1973, às 3 horas da madrugada, seis policiais argentinos que se identificaram como pertencentes à Polícia Federal realizaram uma busca na residência de Cerveira à procura de armas e documentos.

Retornaram às 11 horas da manhã acompanhados de um homem 'que parecia chefiar' o grupo e, pela descrição, poderia ser Sérgio Paranhos Fleury – identificado por uma cicatriz na testa. Em meio a ameaças, eles mostraram uma foto de Cerveira aos outros residentes da casa e se retiraram da mesma após darem a entender que Cerveira havia sido preso.
 

Fleury não usava terno branco ao arrancar sangue dos presos


...Em 19 de fevereiro de 1974, Maria de Lourdes foi informada por Oldrich Hasselman, representante latino-americano do Alto Comissariado da ONU para Refugiados em Buenos Aires, que os dois homens desaparecidos na Argentina, Cerveira e João Batista, foram vistos na noite de 12 para 13 de dezembro de 1973, quando chegavam numa ambulância fortemente guardada, na Polícia do Exército (DOI-Codi), na rua Barão de Mesquita, em lamentável estado físico.

...A morte de Cerveira e de mais outros 11 desaparecidos foi confirmada pelo general Adyr Fiúza de Castro, entrevistado anonimamente pelo jornalista Antônio Henrique Lago para o jornal Folha de S.Paulo, em matéria publicada em 28/01/1979. Adyr Fiúza de Castro foi criador e primeiro chefe do Centro de Informações do I Exército...

...Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, o ex-delegado Cláudio Guerra afirmou que o delegado Sérgio Paranhos Fleury teria sido o responsável pelo sequestro de Cerveira em Buenos Aires e também por seu traslado para o Brasil – informação que Guerra teria obtido do próprio Fleury.

Guerra afirmou ainda que o corpo do major Joaquim Pires Cerveira lhe foi entregue pelo coronel Freddie Perdigão no Destacamento de Operações de Informações, à rua Barão de Mesquita, Rio de Janeiro, para incineração na usina Cambahyba, no município de Campos de Goytacazes (RJ).
 

Neste inferno o conheci; a ele Cerveira voltou para morrer.


...(Uma testemunha ocular) faz o seguinte relato do aspecto dos dois brasileiros quando foram levados para a prisão: "Estavam amarrados juntos em posição fetal, os rostos inchados, mostrando vestígios de sangue fresco. Estavam em estado de choque, obviamente extenuados. Foram levados para o que é conhecido como celas frigoríficas individuais. São câmaras de torturas. A temperatura interna pode ser reduzida a menos de quinze graus. O sistema nervoso do prisioneiro pode também ser afetado. Isto é feito por meio de um sistema de alto-falantes, que reproduz os gritos de pessoas sofrendo torturas".

...Diante das investigações realizadas, conclui-se que Joaquim Pires Cerveira foi sequestrado, torturado e desapareceu em ações perpetradas por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de abril de 1964.

As circunstâncias do desaparecimento de Joaquim Pires Cerveira comprovam a coordenação entre os serviços de informações militares brasileiros e argentinos e o trabalho clandestino deles para monitorar, perseguir e sequestrar exilados políticos no Cone Sul”. (trechos do tópico referente a Joaquim Cerveira no relatório final da Comissão Nacional da Verdade).



Assista aqui à íntegra do filme Condor (2007), dirigido por Roberto Mader, documentário vencedor do Prêmio Acie de Cinema de 2009, tanto pelo veredito do júri quanto na votação do público.


Celso Lungaretti é jornalista.
Blog: Náufrago da Utopia.

Comentários   

0 #1 RE: Condor, o filme Netho 09-03-2018 10:49
Um magistral tributo à memória dos caídos e uma lição àqueles que, sobreviventes da esquerda, não honraram o sacrifício dos mortos, porque banalizaram o acerto de contas e não se empenharam o suficiente para superar a 'Lei da Anistia' e aprofundar e ampliar a 'Comissão da Verdade'.
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