Correio da Cidadania

Agora sim, a indústria da multa

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Ilustração: LabCidade

No dia 14 de novembro, o prefeito de São Paulo, João Doria, promulgou uma lei (n° 16.757/2017) que, além de autorizar o município a contrair uma dívida de R$ 1 bilhão junto a instituições financeiras (metade da qual para financiar asfaltamento), permite a cidade “ceder os direitos creditórios” de “recebíveis” de multas de trânsito. Trocando em miúdos, o município montará uma empresa que emitirá debêntures, para serem vendidos no mercado financeiro e, como garantia para o pagamento aos compradores dos papéis, oferece a previsão de arrecadação de recursos a serem obtidos com multas de trânsito durante seis anos.

A justificativa para a nova legislação, segundo a prefeitura, é a necessidade de antecipar recursos para fazer investimentos na área de mobilidade. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) “carimba” o dinheiro obtido com as multas para que seja gasto, “exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito” (art. 320). A função essencial das multas não é ser mais uma fonte de arrecadação para o Estado, mas servir como uma ferramenta para garantir o cumprimento das leis, e com isso evitar acidentes e mortes, e promover a segurança e bem-estar de todos.

No entanto, a securitização das multas, ou seja, a transformação da expectativa dos recursos a serem obtidos com autuações de infratores em papéis no mercado financeiro, proposta pela Prefeitura de São Paulo, implica que a cidade pague a quem comprar esses papéis por um determinado valor hoje, uma remuneração com juros atraentes no futuro. Para tanto, a prefeitura fez uma projeção do quanto irá arrecadar com as multas nos próximos seis anos.

Há duas questões essenciais que merecem questionamento nesse caso. Em primeiro lugar, o pagamento de juros não está previsto no CTB como uma das formas de destinação dos recursos provenientes de multas. O que é bastante lógico, já que a ideia é promover educação e segurança no trânsito. Usando essa leitura do CTB, inclusive, o uso do valor das multas para ajudar a pagar a folha de pagamento da CET foi judicializado na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad...

Apesar de haver uma brecha aberta para isso a partir de uma Emenda Constitucional (n° 93/2016) aprovada no ano passado, é um completo contrassenso que um recurso previsto primariamente para segurança e educação no trânsito seja utilizado para pagar juros de investimentos financeiros.

Em segundo lugar – e mais importante ainda –, como o objetivo fundamental da aplicação de multas a quem desrespeita as leis de trânsito é que os infratores se eduquem e parem de infringir as normas, a tendência de uma política de fiscalização bem aplicada seria reduzir o número de infratores e, portanto, de multas, idealmente a zero.  

Porém, esse objetivo se perde quando os recursos provenientes das infrações passam a ser institucionalizados como arrecadação, ou melhor, expectativa de arrecadação, e se transformam em garantia para debêntures, invertendo totalmente sua lógica. Com a lei, a prefeitura precisa necessariamente aplicar multas para poder pagar os investidores.

O objetivo, então, de promover segurança e educação no trânsito é deslocado para abrir espaço para a arrecadação de recursos. O que passa a reger a política de fiscalização e autuação de infrações é a lógica da rentabilidade futura, instituindo, assim, agora para valer, a mítica indústria da multa, com seus sócios, especuladores do mercado financeiro.


Letícia Lindenberg Lemos é arquiteta e urbanista e mestranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAU USP. Possui especialização em Mobilidade Sustentável em Países em Desenvolvimento pela United Nations Institute for Training and Research.

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, relatora da ONU pelo Direito à Moradia no Brasil, em cujo blog este artigo foi originalmente publicado.

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