Correio da Cidadania

Samuel Pinheiro Guimarães, entusiasta da integração

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Morre Samuel Pinheiro Guimarães, um dos principais nomes da diplomacia  brasileira - Rede Brasil Atual
A paixão não é, para muitos, a melhor companhia para quem procura esmerar-se em seu ofício e alcançar posição de destaque e respeito em sua área de atuação e para além dela. No caso de Samuel Pinheiro Guimarães, a paixão parecia se revelar a cada conversa, palestra ou discurso, tornando-se fator decisivo para a qualidade de seu pensamento e ação, mesmo com alguns exageros. Seu passamento no dia 29 de janeiro nos leva a fazer algumas breves considerações de suas ideias e concepções sobre as relações internacionais do país.

O primeiro texto que tive oportunidade de ler – e que se tornaria o livro Quinhentos anos de periferia (1999) – confirmava o que eu havia aprendido em meus anos de graduação e como professor do ensino médio: a História do Brasil em suas grandes linhas poderia ser resumida em trezentos anos de colônia e duzentos de neocolônia. O embaixador, em algumas de suas palestras, ilustrava essa condição com os minutos iniciais do filme Constantine, de 2005, estrelado por Keanu Reeves e Rachel Weisz, em que lúcifer e o anjo eram representados pelo latino-americano e pelo euroamericano.

Em diálogo com a melhor tradição cepalina e com acadêmicos de diferentes formações, como Hélio Jaguaribe, Maria da Conceição Tavares e Moniz Bandeira, além de “clássicos” da teoria das Relações Internacionais, identificava no processo histórico que engendrou centro e periferia a existência de estruturas hegemônicas de poder. Um conceito mais adequado do que potências hegemônicas para a análise do atual cenário internacional.

Estruturas organizadas, mais precisamente, em torno de Estados hegemônicos, aquele ou aqueles em condições de organizar o sistema internacional e espelhá-lo de acordo com os seus diversos aspectos e interesses, como fizeram os Estados Unidos no pós-1945. Samuel Pinheiro Guimarães adotava o ponto de vista de países periféricos como o Brasil para identificar seus maiores desafios na necessidade de mobilizar a poupança interna, na atuação no sentido de flexibilizar os organismos internacionais e de promover a tecnologia de ponta. Tais princípios se fariam presentes na política externa dos governos Lula, com Celso Amorim como chanceler, tanto em seus acertos como em suas “ambições desmesuradas”, como diria Amado Luiz Cervo.

Como ideólogo, Pinheiro Guimarães articulou a política externa com a defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, além da necessidade de promover a construção de capacidade militar, tendo como horizonte (hipóteses) a consolidação do capitalismo brasileiro, a atenuação das disparidades internas e na diminuição das assimetrias regionais e de renda.

O ativismo diplomático brasileiro junto aos organismos e entidades internacionais também se fez presente em Desafios brasileiros na era dos gigantes (2005), no qual voltou a tratar de política internacional, para se concentrar nas demandas econômicas e tecnológicas, juntamente com o papel a ser desempenhado pela integração regional na superação da condição periférica. Valeu-se dos ensinamentos de Raúl Prebisch e Celso Furtado, entre outros, sem recuar diante da vulnerabilidade ideológica do país, a demandar grande conhecimento da história brasileira.

Em seu “programa estratégico de curto prazo”, elaborado a partir da experiência do Mercosul, priorizava a adoção de uma política industrial e de serviços comuns, a dinamização do comércio intra e extra-bloco, a remoção de barreiras à exportação de forma seletiva, a criação de um fundo de reestruturação industrial e a potencialização do Convênio de Créditos Recíprocos. Ao enfatizar o que fazer e não o como fazer, não tratou de problemas de fundo como as estruturas oligárquicas de poder de cada país-membro do bloco, das assimetrias entre eles ou da presença de distintas visões sobre o lugar da indústria em suas economias.

Pinheiro Guimarães talvez tenha sido mais um teórico que um historiador, sociólogo ou cientista político a tratar da política internacional e da política externa brasileira. Em suas “Reflexões sul-americanas” (prefácio ao livro Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul, de Moniz Bandeira, 2003), identificou os desafios que o Brasil enfrentava em sua inserção internacional, os objetivos das Grandes Potências para a América do Sul e o dilema existente na política mundial, reclamando um “projeto nacional consistente”. Tudo isso em estreita relação com a Argentina. Reforçava assim o que a intelectualidade brasileira, a exemplo de Hélio Jaguaribe, já reclamava nos anos cinquenta.

Houve um momento propício à realização dessas ideais, aquele no qual Brasil e Argentina tiveram governos com concepções e diretrizes convergentes, entre 2003 e 2007, sob os governos de Lula e de Néstor Kirchner. Em contato sistemático com o ministro da Economia argentino, Roberto Lavagna, o diplomata brasileiro contribuiu para ajustar as políticas externas no sentido do neodesenvolvimentismo.

Contudo, Brasil e Argentina se encontravam em distintas situações política e econômica, tornando a semelhança de perspectivas pouco útil para avançar na integração: enquanto o Brasil expandia sua presença econômica na América do Sul, a demandar acesso a mercados, a Argentina procurava recompor parte de seu parque industrial, o que exigia algum grau de protecionismo.

De qualquer modo, as concepções de Pinheiro Guimarães sobre a política internacional e sua abordagem sobre a inserção internacional do Brasil, nas quais se destacava o entusiasmo com a integração sul-americana, justifica eventual retomada da leitura de seus textos.

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