Ajardinar a
esperança
Frei Betto
Você pensa que eu também não tenho
vontade de mandar tudo às favas? Pensa que não me invade esse
sentimento de frustração, essa amargura oca, essa acidez na boca da
alma? Sim, tem hora que me canso de bancar o Sísifo, de ficar
carregando ladeira acima essa pesada pedra de uma esperança
esburacada. Tem hora que me sinto Prometeu acorrentado, mas sem
revolta, agradecido por ter as mãos atadas. E a única coisa que me
passa pela cabeça é embriagar-me de alienação e ficar na varanda do
apartamento, contemplando silenciosamente a cidade lá embaixo,
miríades cristais reluzindo impessoais, anônimos, indiferentes ao
meu estupor.
É muito frustrante semear esperanças. São grãos miúdos, delicados,
quase invisíveis, ora plantados no caminho acidentado, ora num
coração angustiado, sempre no terreno árido da pobreza insolente. E
depois vem o árduo trabalho de regar todos os dias, ver emergir o
primeiro broto, um fiasco de verde aflorando sobre a terra negra, e
a gente é tomado por esse sentimento feminino do querer cuidar e
começa então a acreditar que a primavera existe.
A esperança é um pássaro em vôo permanente. Segue adiante e acima de
nossos olhos, flutua sob o céu azul, não se lhe opõe nenhuma
barreira. É assim em tudo aquilo que se nutre de esperança: o amor,
a educação de um filho, o sonho de um mundo melhor.
A política sempre foi alvo predileto da esperança, desde os tempos
bíblicos. No Antigo Testamento, aparece no passado (Jardim do Éden),
no futuro (a Terra Prometida) e no presente (a confiança nas
promessas de Javé). Os profetas sabiam ajardinar a esperança.
A esperança política é uma fênix. Sempre a renascer das cinzas. Foi
assim no milenarismo monárquico medieval, na Revolução Francesa, na
União Soviética. Foi assim também com Tancredo Neves, visto como um
novo Moisés que também não pisou a Terra Prometida. Agora as
denúncias de corrupção fazem o pássaro cessar o vôo em pleno ar. Ele
não pousa. Fica lá em cima empalhado por nossas miragens utópicas,
enquanto uma dor dilacera-nos por dentro.
Então minha memória resgata o horror. Primeiro, os gritos. A pele
toda se arrepia. Se eu fosse surdo, veria apenas o rosto esgarçado
numa máscara de terror. Mas meus ouvidos se entopem dos berros
estridentes. O corpo eriça-se. Não sou eu, nem a minha razão que o
comanda. É o instinto animal, primevo, que vem lá de baixo da escala
zoológica e agora se manifesta nessa reação de bicho acuado por uma
ameaça próxima. Não há saída. Da sala de tortura, saio morto ou
quebrado. A outra alternativa é mais assombrosa. A de sair
irremediavelmente sonegado em minha identidade, mercadejando a
informação em troca de uma sobrevivência indigna.
Ele abaixa o tom de voz e tenta vencer-me pelo aliciamento. Diz
pausadamente que não tenho escapatória. E devo contar com a sua
compreensão. Mas a sua paciência tem limites... tem limites... até
que meu silêncio detona a explosão. Nele a fera racional irrompe em
gestos calculados e começa a tortura.
Mas essa não é a única modalidade de tortura. Há outras, tão ou mais
terríveis, porque escarafuncham a alma, ferem fundo o espírito,
arrancam o que o coração guarda, deixando-o miseravelmente vazio. É
a dor de ver um projeto adulterado pela ambição desmedida, a sede de
poder, o pragmatismo inescrupuloso, essa esperteza tão pusilânime
que acaba por engolir o esperto, como a cobra morde o próprio rabo.
Um sonho se tece de mil fios delicados, até que um dia a imagem se
transporta da mente à realidade. Talvez não se saiba aonde
exatamente se pretende chegar. É como no amor, os sentimentos criam
vínculos sem que se saiba ou se possa adivinhar o porvir. Sabe-se,
contudo, por onde não ir. Como no poema de José Régio, “não sei por
onde vou, / não sei para onde vou, / sei que não vou por aí!". Não
vou pelas vias que conduzem os passos do inimigo. Não trilharei os
caminhos sombrios, tortuosos, da corrupção, da sonegação, da
falcatrua e da negociata.
Um corrupto é o resultado de pequenas infidelidades. Ele não se faz
senão através de detalhes que se lhe acumulam na alma: levar
vantagem num negócio, apropriar-se de um bem aparentemente
insignificante, trair a confiança alheia. Não é o dinheiro que
destrói a sua moral. É a ganância, a arrogância, a convicção de que
é mais esperto que os demais.
Não há ética sem humildade, saber ser do tamanho que se é, nem maior
nem menor do que ninguém. E sustentar a esperança na certeza de que
só haverá colheita se, desde agora, se cuidar, delicada e
anonimamente, da semeadura.
Frei Betto
é escritor, autor de
“Típicos Tipos” (A Girafa), um dos dez finalistas do prêmio Jabuti
2005 na categoria Contos e Crônicas - "Típicos Tipos –
coletânea de perfis literários", de Frei Betto, editado pela A
Girafa, foi selecionado entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti.
O resultado final do prêmio, concedido pela Câmara Brasileira do
Livro, será divulgado no dia 31 de agosto. Em 1985, Frei Betto
ganhou o Jabuti, principal prêmio literário do Brasil, por seu
livro de memórias Batismo de Sangue, que agora está sendo filmado pelo
cineasta Helvécio Ratton.
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