Terceirizações urbanas

Por Mariana Fix

 

O sentimento de que o Estado não é mais capaz de dar conta dos crescentes problemas urbanos, devido à falta de recursos, parece orientar os governos a cultivarem uma certa dependência da chamada iniciativa privada. Alegam que, se antes eram as empresas que precisavam do Estado – para produzir na cidade o espaço no qual se instalavam, ou a infra-estrutura urbana, por exemplo –, agora a situação se inverte e o Estado é que passa a precisar da "iniciativa privada" como "parceira".

Essa virada parece ter acontecido por aqui em meados dos anos 1980, com o fim do "desenvolvimentismo", quando, feitos os cálculos, definiu-se que as carências urbanas eram grandes demais para serem enfrentadas pelo poder público e que, portanto, a única solução seria a realização de parcerias.

Ao mesmo tempo, empresas que adotavam "comunidades carentes", passaram a adotar também bairros ricos ou "deteriorados", em troca da divulgação de suas marcas e de exercer um controle maior sobre o espaço público. A adoção de praças, canteiros centrais, ruas ou até esculturas, a construção de vias ou alças de acesso (que servem a seu próprio projeto) são algumas formas possíveis dessas "terceirizações urbanas", como foram recentemente chamadas. Assim, se a prefeitura não tem mais condições de cuidar da cidade, a própria população encarrega-se de zelar por ela. E o melhor: essas festejadas experiências revelariam uma incrível "convergência" de interesses entre o governo e as empresas.

Mais do que uma praça ou uma escultura, a "sociedade civil" assume o protagonismo da produção e controle do espaço público. Surgem associações – ditas da "sociedade civil", mas essencialmente compostas por setores empresariais, especialmente bancos ou construtoras – com propostas que vão da instalação de um sistema privado de vigilância, até a abertura de bulevares, passando pela coleta seletiva do lixo, enterramento da fiação e retirada dos postes, alargamento das calçadas. Essas associações legitimam-se ao oferecer, às vezes de modo palpável, melhorias nos seus bairros – milagre da cidade de primeiro mundo em país de terceiro. Mesmo quando o controle que exercem, do desenho urbano à segurança privada, objetiva a exclusão e a segregação.

Diferentemente da filantropia, as taxas que recolhem de seus associados são investidas na sua região. Desse modo, a elite vai configurando para si mesma uma cidade própria, numa ação análoga às iniciativas separatistas de bairros ou estados, que drenam para si recursos produzidos coletivamente.

Contudo, é preciso ver para além da cortina de fumaça das "parcerias" quem de fato paga pelas melhorias. Enquanto tudo se passa como se as empresas prescindissem do Estado, na prática os investimentos privados são quase sempre irrelevantes perto dos recursos públicos injetados nessas regiões. Pequenas iniciativas, acompanhadas de um bom marketing, criam a impressão de que as empresas assumem os custos, escamoteando o fato de que essas ações estão quase sempre associadas a grandes investimentos do Estado em infra-estrutura. Para não mencionar custos públicos indiretos, como os incentivos fiscais, a concessão de áreas públicas, a utilização de recursos de empresas e órgãos públicos, e o aumento do custo de manutenção das regiões mais equipadas, por exemplo.

Ainda assim, esses investimentos privados servem para direcionar os escassos recursos públicos para reforçar regiões já privilegiadas, em detrimento de outras, o que tende a aumentar a disparidade entre regiões ricas e pobres na cidade. Quando o Estado cede à lógica dessas terceirizações, ou concessões urbanísticas (numa formulação ainda mais recente), enquanto os mais pobres no máximo conseguem formar associações que precisam reivindicar tudo, da moradia à infra-estrutura básica, os bairros ricos se organizam para induzir a realização de novas obras. A disparidade nas condições de vida acentua-se tanto que os diferentes setores só podem ser mantidos separados por forte segregação espacial, com a construção das grandes torres, dos condomínios fechados e murados, ou com a transformação de bairros existentes em verdadeiros bairros-condomínios, altamente vigiados.

Mariana Fix é arquiteta, mestranda em sociologia na USP e autora de Parceiros da Exclusão. Duas histórias da construção de uma "nova cidade" em São Paulo: Faria Lima e Água Espraiada (Editora Boitempo).

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