Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães questiona Alca (1)

Antecipação da implantação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), seu impacto no Mercosul, conseqüências de uma decisão soberana do Brasil de não participar da Área de Livre Comércio etc., todas essas são questões que vêm tendo presença constante no noticiário nacional, com uma análise na maioria das vezes rasteira e superficial. Para aprofundar essa discussão, o Correio publica a partir dessa edição a avaliação do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães sobre os itens mais polêmicos referentes ao assunto, de importância estratégica para a economia nacional. Para tanto, estaremos nos baseando em conversas com o embaixador, e em suas entrevistas concedidas ao site Global 21 e ao jornal Valor Econômico. Confira abaixo.

 

Irreversibilidade da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) - Não há, na política e no direito internacional, nenhum processo de negociação, em nenhum foro, em nenhuma região, em nenhuma organização, que tenha de ser considerado irreversível e aceito passiva e submissamente pela sociedade como irreversível. Na ausência de pressões, os Estados se engajam em negociações por decisão de seus governos (e não de suas sociedades), a partir da avaliação momentânea desses governos das circunstâncias históricas e das vantagens que pensam obter como resultado dessas negociações. Na medida em que aquelas circunstâncias se modificam radicalmente, aquela decisão inicial de negociar pode e deve ser repensada. Caso se chegue à conclusão de que os interesses superiores da sociedade brasileira aconselham a que não se negocie uma área de livre comércio, no caso com os Estados Unidos, pois é disto que se trata na ALCA, pode-se e deve-se decidir que a participação do Brasil neste processo não deve mais ocorrer.

Ora, houve uma modificação radical de circunstâncias entre o final de 1994 e 2000. Em 1994, era o início do Plano Real e às vésperas do primeiro governo FHC, com promessas de estabilidade de preços, desenvolvimento, emprego, redução de desigualdades, moralidade pública e privada, paz social. No mundo, era o início de uma nova ordem mundial, presidida pela OMC e pelo FMI, de benfazeja expansão da produção e do comércio de pobres e ricos, de eliminação da pobreza absoluta, de retomada do desenvolvimento, de redução das agressões ambientais (efeito estufa, camada de ozônio etc.). Na política, esperava-se o fim dos conflitos armados, do arbítrio dos poderosos, da acumulação de armamentos.

A situação atual é em tudo radicalmente distinta. As esperanças não se materializaram e as expectativas são temíveis e temidas: desemprego elevado, concentração crescente de renda, espraiar da corrupção econômica e política, violência espantosa, desigualdades gritantes, vulnerabilidade externa acentuada, dificuldade de expandir exportações, permanente risco de moratória (como em 1999) , vizinhança instável e tumultuosa, destacamentos militares americanos operando no continente sul-americano, difusão do narcotráfico. No mundo, estagnação dos pobres e progresso dos ricos, crises seguidas e volatilidade excessiva de capitais nos mercados emergentes, aumento de armamentos sofisticados, desarme dos desarmados, arbítrio deslavado dos poderosos, desrespeito aos princípios de não-intervenção e autodeterminação, não cumprimento pelas grandes potências de compromissos ambientais, concentração de poder das mega-empresas e oligopolização dos mercados, contínuo fechamento dos mercados dos desenvolvidos, arbítrio no comércio internacional e desprestígio da OMC e do FMI por sua parcialidade ostensiva em favor dos países ricos, diminuição da participação dos subdesenvolvidos no comércio internacional etc.

Assim, considerar o processo da ALCA como irreversível seria desconhecer estas mudanças radicais de circunstâncias e de expectativas. Por outro lado, nenhuma retaliação pode resultar de uma decisão soberana brasileira de não participar de uma eventual ALCA, como aliás hoje não participamos do NAFTA. Não há nenhuma regra do direito internacional ou de agências internacionais de que o Brasil e os EUA participem, tais como a OMC e o FMI, que obrigue o Brasil a negociar compromissos de qualquer natureza e muito menos um com o alcance do que se pretende fazer na ALCA- que reduzirá de forma drástica a possibilidade de fazer política econômica de forma condizente com os interesses de uma sociedade subdesenvolvida, porém de extraordinário potencial, como é o Brasil. Além disto, as características da pauta de comércio exterior e de origem de investimentos estrangeiros do Brasil, muito mais diversificadas e menos dependentes do mercado americano, ao contrário de outros países da América do Sul e em especial da América Central, tornam altamente inconveniente a participação brasileira em uma eventual Área de Livre Comércio das Américas, dominada que será pelos interesses e pela dinâmica da economia dos Estados Unidos - que com a ALCA realizaria seu desígnio histórico de incorporação subordinada da América Latina a seu território econômico e à sua área de influência político-militar.

Impacto político, econômico e comercial da ALCA no Mercosul - O impacto sobre o Mercosul será radical por mais que os defensores da ALCA e de sua compatibilidade com o Mercosul argumentem que este impacto se daria ao longo do tempo, em um período de dez a quinze anos.

Os benefícios do Mercosul (vigorosa e rápida expansão do comércio intra-zonal, aumento de investimentos externos na região etc.) decorrem de ser ele um sistema preferencial que privilegia as empresas instaladas nos Estados membros e as protege da competição de empresas de terceiros países, entre eles os Estados Unidos.

A participação dos Estados do Mercosul em uma eventual ALCA faria com que os bens e serviços exportados pelos Estados Unidos e Canadá (pois não haverá na prática exportações para o Mercosul de empresas de pequenos países latino-americanos que integrariam a ALCA) para o Mercosul passem a gozar do mesmo tratamento de que hoje gozam as empresas brasileiras, argentinas, paraguaias e uruguaias nos mercados do Mercosul. Os produtos brasileiros estarão competindo em pé de igualdade com os americanos na Argentina e nos demais países do Mercosul (e da América do Sul, principal destino de nossas exportações de manufaturados). Tendo em vista que, como é óbvio (fato gritante que apologistas da ALCA simplesmente esquecem), as condições de competitividade das mega-empresas americanas são muito maiores do que as das brasileiras, pode-se chegar à conclusão que nossas exportações para tais países diminuirão enquanto aumentarão as exportações americanas, inclusive para o mercado brasileiro, onde a tarifa será zero. Aliás, este é o objetivo declarado dos Estados Unidos em promover a ALCA: aumentar suas exportações de bens e serviços e seu saldo comercial com esta região, sem prejudicar seus setores sensíveis, tendo em vista suas dificuldades de equilibrar seu comércio com outras regiões como a União Européia, o Japão e a China, com quem têm grandes déficits.

A ALCA e o Mercosul são assim incompatíveis, pois caso a ALCA venha a existir ela "absorverá" o Mercosul. Os resultados comerciais extraordinários do Mercosul, isto é, de expansão das exportações brasileiras, jamais teriam ocorrido não fosse a preferência tarifária criada pela Tarifa Externa Comum - TEC. O Mercosul é um regime que privilegia as empresas, com unidades de produção instaladas nos quatro países membros, no mercado intra-regional. Com a ALCA, o Canadá, os Estados Unidos e o México (a capacidade dos micro-Estados, mini-Estados e pequenos Estados de aproveitarem a "abertura" do Mercosul é limitada) passariam a gozar das mesmas vantagens no mercado regional do Mercosul, competindo em igualdade de condições com as empresas instaladas na sub-região. A preferência que caracteriza o Mercosul deixará de existir e o Mercosul desapareceria, exceto a TEC que continuaria a vigorar para países fora da ALCA, prejudicando assim parceiros de grande importância política e econômica para o Brasil.

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