FHC X MST

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Por Plinio de Arruda Sampaio Jr.
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O ataque sistemático ao Movimento dos Sem Terra revela que, apesar do verniz democrático, a maneira do governo FHC de resolver os conflitos sociais enquadra-se perfeitamente na secular tradição do mandonismo brasileiro. Incapaz de assimilar as reivindicações que brotam do movimento popular, por mais justas que elas sejam, os donos do poder não hesitam em lançar mão da truculência e da força bruta para pôr a "gentalha" no seu devido lugar.

Para os que lutam por um Brasil realmente democrático, parece que o relógio andou para trás e que voltamos aos anos de chumbo da ditadura militar. Vale tudo contra os que combatem o latifúndio. Retaliações econômicas, manipulação de informação, estigmatização, censura aos meios de comunicação, Lei de Segurança Nacional, tortura, massacres e assassinatos são as armas usadas contra trabalhadores indefesos que buscam direitos elementares do ser humano.

A insistência em criminalizar o MST põe em evidência que hoje, como dantes, as classes dominantes só conhecem dois métodos para lidar com as pressões sociais e políticas de origem popular: a cooptação ou o esmagamento. Canhestra democracia tucana que funciona como circuito fechado a serviço dos endinheirados e que restringe a liberdade política dos demais ao direito de contemplar calados o avanço do descalabro. Estranhos democratas de salão que reagem com medo-pânico à emergência das classes subalternas como atores históricos.

Para quem foi aluno de Florestan Fernandes, ostenta ser grande conhecedor de Max Weber e se vangloria de seu auto-exílio em Paris no conturbado ano de 1968, é surpreendente que FHC ignore que a essência de um regime democrático repousa precisamente na presença de um mínimo de eqüidade social e de uma lógica de tolerância no modo de tratar o conflito como meio de obter conquistas sociais.

Engana-se redondamente o presidente quando imagina que o MST é responsável pela violência no campo. A verdadeira causa da violência reside na adoção de um modelo econômico que, ao desarticular a industrialização por substituição de importações e inviabilizar a sobrevivência dos pequenos e médios produtores rurais, quebra o padrão de mobilidade social que, até o final dos anos setenta, era responsável pela surpreendente capacidade da economia brasileira de gerar empregos e absorver uma parcela significativa do contingente populacional expulso do campo.

Não é o MST que promove invasão de terra, são as invasões produzidas pelas multidões que perambulam pelo país afora em busca de um lugar ao sol que impulsionam o MST. Os Sem Terras procuram transformar a violência no campo em ocupações pacíficas e não escondem de ninguém a necessidade de dar à luta pela terra o conteúdo de uma cruzada pela democratização das estruturas sociais. Por esse motivo, recusam-se a ficar confinados à defesa corporativa de seus interesses (o que seria bem recebido pelos defensores da ordem) e procuram politizar a questão agrária, mostrando sua relação com as demais mazelas de nossa sociedade.

O sentido e a intensidade que o MST pretende dar à reforma agrária chocam-se frontalmente com a orientação neoliberal do programa fundiário do governo federal, cuja essência - definida por diretrizes oriundas do Banco Mundial - consiste em tratar o acesso à terra como um problema exclusivo dos necessitados, que deveria ser resolvido caso a caso, respeitando as restrições orçamentárias do Estado. A lógica paradoxal desta política, ao mesmo tempo assistencialista e financeira, dispersa os assentados em unidades econômicas inviáveis, tornando-os vítimas de dívidas incompatíveis com sua capacidade de pagamento.

O pecado mortal do MST é não aceitar o conteúdo individualista e o ritmo de conta-gotas do programa agrário de FHC e lutar para que não se perca mais uma oportunidade de erradicar pela raiz os privilégios aberrantes que fazem do Brasil uma das sociedades mais injustas do mundo. No braço de ferro entre FHC e os Sem Terra, o que está em jogo é definir se a reforma agrária será feita pelos latifundiários e para os latifundiários, assim como a abolição dos negros foi feita pelos brancos e para os brancos, ou se a reforma agrária será conduzida de baixo para cima, servindo de estopim a uma revolução democrática que mude de fato a cara do Brasil. FHC não é um inocente. Sabe perfeitamente o que faz e a quem serve. Terá o julgamento histórico que merece pelo crime de lesa-democracia.

Plinio de Arruda Sampaio Jr, 42, é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-UNICAMP) e autor do livro "Entre a Nação e a Barbárie" (Editora Vozes).

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