Geral

A falsa reforma agrária joga
lenha na fogueira

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Por Marina Silva
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O país vive dias intranqüilos, parece haver no ar ameaças graves e difusas, relacionadas a uma propalada radicalização do movimento dos sem-terra, com a ocupação de prédios públicos ocorrida em todo o país. Essa inquietação é alimentada pelas acusações do governo federal ao MST, de atentar contra a ordem democrática. O presidente e seus ministros falaram em baderna, tumulto, provocação, desrespeito à democracia e à cidadania, fascismo, terrorismo, crime. Anunciou-se, além disso, que "a paciência do governo chegou ao fim". E tudo culminou com o "pacote anti-MST", essencialmente repressivo e policial, que também desloca para os estados a pressão política do campo. O governo cunhou até mesmo sua palavra de ordem: "reforma agrária sim, baderna não".

Perfeito, para aqueles que esperam de governos só demonstração de força. O problema é que há algo de podre no reino do pacote. Deve-se perguntar se as manifestações dos últimos dias não significam que também a paciência da sociedade com o governo pode chegar ao fim. Sim, porque o outro lado da propalada baderna é a incrível incompetência e enrolação com que o governo conduz a questão da reforma agrária. A verdade é que as autoridades falam em reforma agrária mas, de fato, não a fazem e, com isso, levam cada vez mais os trabalhadores rurais à radicalização. Tentam fazer passar por reforma – que supõe medidas estruturais e concatenadas, da estrutura fundiária a políticas públicas agrícolas – um programa de assentamentos defensivo e reativo ao MST, uma contabilidade de assentados para contrapor à do movimento. Um programa tão inconsistente e oportunista que, no ano passado, seus dirigentes tiveram a desastrada idéia de desviar para a Amazônia o fluxo de assentamentos. Uma espécie de "amazonização" da sua pretensa reforma, talvez na suposição de que ali é uma "terra de ninguém", onde poderiam confinar os sem-terra, aliviando a pressão sobre o resto do país. Houve uma grita de ambientalistas, alertando para o risco de um forte impacto ambiental sobre a conhecida fragilidade dos solos locais para exploração agrícola e alertando também para a falácia econômica e social que se estava montando, visto que em pouco tempo os novos assentados veriam sua terra sem condições de produção.

Este é apenas um exemplo de que, para sermos justos, devemos tentar avaliar em que medida o governo é o maior fomentador de "badernas". É preciso também avaliar que tipo de "diálogo" o governo propõe, se de antemão desqualifica o interlocutor com a adjetivação registrada no início desse artigo. Uma versão mais pesada dos "neobobos" e "fracassomaníacos" com que já evitou antes o diálogo com críticos que, como o tempo mostrou, estavam certos em muitas de suas análises.

O país deve reconhecer que, graças ao MST, a reforma agrária está na ordem do dia. Deve-se lembrar que o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi criado à reboque do movimento dos sem-terra, e não no início do governo, como indicador de prioridade à reforma agrária. Não se trata de sacralizar o MST ou aprovar acriticamente suas ações, mas também não se pode aceitar a demonização do movimento. Não se pode aceitar, ainda, o ataque retórico e prático do governo, que esconde manipulação dos fatos, com óbvios propósitos de tirar de cena a responsabilidade deste governo, que não prioriza políticas sociais estruturais e trata superficialmente desafios tão difíceis quanto inadiáveis, a exemplo da reforma agrária.

O MST é um movimento social radicalizado. Mas é um movimento social legítimo, que luta contra uma das maiores chagas da história brasileira, a vergonhosa estrutura fundiária, que não encontra paralelo em nenhum país desses que a elite brasileira costuma encher a boca para chamar de "primeiro mundo". As táticas de luta do MST não são muito diferentes de formas conhecidas, no mundo todo, de pressão para forçar governantes recalcitrantes a negociar demandas populares, aquelas que não contam com o benefício dos acertos feitos nos bastidores do poder. Esses, dotados de suas próprias táticas de pressão e constrangimento, são, muitas vezes, profundamente atentatórios à democracia. Mas dificilmente seus artífices são chamados de baderneiros.

A ocupação de prédios públicos por um movimento social pode ser questionável, mas não atenta contra a ordem democrática. É um recurso polêmico, mas seu objetivo não é anárquico; é forçar um novo patamar de diálogo com governantes que não se prestam ao diálogo ou o falseiam. A principal demanda do MST é hoje a inclusão da área econômica, de quem realmente decide, nas negociações. Não é esta uma mensagem semelhante à do governo: que a paciência dos trabalhadores do campo chegou ao fim? Partida do governo, ela tem um claro tom de ameaça, de usar a força e a violência para a "manutenção da ordem". Partida do povo, vira "ameaça à democracia", deixando-se de lado que ela é municiada pela omissão e irresponsabilidade federais.

Mas que "ordem" é essa que tanto se quer defender? Por acaso não se coloca a democracia em risco quando se deforma o sistema representativo por meio de barganha política imoral e sistemática? Não se coloca a democracia em risco quando se usa o tacão do poder para abortar investigação sobre uma compra de votos que pode ter decidido uma reeleição presidencial?

Possivelmente se está confundindo democracia com a tranqüilidade dos governantes. Seria incrível que, no país da política agrária inexistente ou atrasada, os trabalhadores do campo se preocupassem em não perturbar o sono oficial. Eles estão no limite e agem como tal. A única neutralização possível de seu movimento não é a aplicação do pacote repressivo do governo. Nem sequer enquadrar centenas de trabalhadores brasileiros pobres no crime de formação de quadrilha, como absurdamente se aventou. Para neutralizar a radicalização, só mesmo a reforma agrária. Mas, para isso, seria necessário que o governo tivesse uma estatura que hoje não tem.

O tamanho da incompetência e da timidez do governo para fazer a reforma agrária é proporcional à virulência da adjetivação que atira contra o MST. Se o presidente quer dar um basta à desordem, pare de fomentar a desordem a partir de seu próprio governo. Passe para a história como o presidente que enfrentou a questão agrária no Brasil e não como a figura que usou a morte de um sem–terra para "alertar" os demais. Aliás, é revoltante ouvir a palavra "baderna", quando se compara a solenidade engravatada em que se anunciou, sob aplausos, o endurecimento policial contra o MST, à cena, estampada nos jornais, do enterro em cova rasa do sem-terra paranaense.

O ministro de Desenvolvimento Agrário declarou, como quem descobre a pólvora, que o MST tem "objetivos de poder". Talvez tenha mesmo, assim como um outro grupo que declarou, como algo legítimo e pacífico, seus propósitos de "permanecer vinte anos no poder". Portanto, poder todos querem; é um caminho para realizar sonhos ou ambições. A questão é com quem, como, para que e com que métodos se chega ao poder. Ou nele se permanece. O que o MST quer, no momento, é a reforma agrária. Tem uma pauta claríssima a esse respeito e joga um cabo de guerra com o governo em torno desse objetivo. Quem acena com fantasmas, pode estar querendo uma desculpa para arreganhar os dentes e resolver as coisas de maneira nada democrática.

Marina Silva é senadora pelo PT/AC
E-mail: marinasi@senado.gov.br

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