O homem que nasceu para rir
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por Mário Maestri
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Carlos Marighella viveu sua vida como paradoxo cintilante. Sua mãe era negra baiana, ligada à cultura da terra. O pai, mecânico italiano, ateu e anarquista, chegado às coisas da técnica.

Menino travesso, jogava pelada de pé descalço, mas protestava contra o racismo na escola. Hábil na matemática, deu aulas a meninos ricos. Aos 19 anos, foi preso e surrado por poesia desrespeitosa ao poder. Abandonou o curso de Engenharia, para ligar-se ao Partido, e tentou reiniciar os estudos mais tarde. Preso em 36, aos 25 anos, livre, foi combater os trotskistas, companheiros de luta socialista. Detido em 39, jogava peladas com os integralistas. Em prol da unidade anti-fascista, perfilou-se diante da bandeira que o metera e o mantinha na cárcere. Após o Estado Novo, defendeu reorientação política, mas rendeu-se às razões de Prestes. Na Constituinte, diante dos colegas deputados, esparramou pelo chão o pão duro servido ao povo. Adepto do realismo socialista, fazia poesia, compunha samba, dançava no Bola Preta. Marxista ortodoxo, mandava os camaradas irem à procissão, para entenderem o Brasil.

Nos anos 40, preparava com o Partido a insurreição, e o povo apoiava Getúlio. Chorou lágrimas doloridas, ao saber dos crimes do Timoneiro. Enamorado da vida, pouco tempo teve para si. Amou seus amores, sem ser mulherengo. Bebeu sua cerveja, sem embriagar-se. Escolheu como companheira uma jovem e bela aeromoça, dedicada comunista. Conviveu tardiamente com o filho, mas não dormia sem beijar o pimpolho, mesmo já grandote.

Nos anos 50, defendeu que o Partido saísse do gueto e, em 62, denunciou a eminência do golpe. Em 64, resistiu à prisão e entrou, baleado, no hospital, dando vivas a Prestes. Cansado de ficar "esperando a maré", resolveu ir "buscá-la no fundo do mar". Foi a Cuba, rompeu com o Partido, voltou propondo o fim do partido leninista. Fundou a Ação Libertadora Nacional, teorizou a guerrilha, participou de expropriações, já quase sessentão. Partiu pra luta armada, acompanhado de um punhado de jovens destemidos, em São Paulo, na pátria do proletariado nacional. Morreu sozinho, em emboscada noturna, e foi sepultado, covardemente, como indigente. Sua morte inundou de lágrimas os olhos dos militantes e homens de bem do país, em 4 de novembro de 1969, há trinta anos.

Jamais temos, em Carlos Marighella: o homem por trás do mito [NOVA, Cristiane & NÓVOA, Jorge (Org.). São Paulo: UNESP, 1999. 556 pp. il.], relatos hagiográficos da vida de comunista exemplar. São páginas que revelam o tinir surdo, mas intenso, do choque de armas que já se perde nas páginas da história, influenciando poderosamente o presente.

Publicado para participar das celebrações das três décadas do assassinato de Carlos Marighella, Cristiane Nova e Jorge Nóvoa, professores da Universidade Federal da Bahia, reuniram preciosa seleção de escrito e poemas do próprio Marighella e de depoimentos e estudos, pungentes e elucidativos, de mulheres e homens que estudaram, conheceram ou conviveram com Carlos Marighella - como, entre outros, os organizadores, Ana Montenegro, Antônio Cândido, Calos Augusto Mariguella (filho), Clara Charf, Emiliano José, Florestan Fernandes, Jacob Gorender, Jorge Amado. Esse belíssimo livro devolve os nervos, a carne, o sangue e as lágrimas a esse personagem de nosso passado recente, já quase idolatrado.

Concluída a leitura, o homenageado surge para nós quase como o viam seus companheiros de luta. Um mulato baiano, fortão, cabeça raspada, dentes fortes, "nenhum tipo de beleza" especial, que viveu, por três décadas, de pés no chão e peito aberto, os percalços de sua época. Por sua entrega e destemeridade, transformou-se em metáfora imorredoura das derrotas e sucessos do nosso povo.


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