Stédile: falta à oposição
um projeto estratégico
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O Brasil vai assistir na próxima semana, no dia 7 de outubro, à chegada da Marcha Popular a Brasília. Após 1580 quilômetros de caminhada, os militantes de diversos movimentos populares chegarão ao Distrito Federal com um objetivo claro e um pouco diferente dos que fizeram parte da Marcha dos 100 mil, realizada no mês passado pelos partidos de oposição. Desta vez, a idéia não é realizar um grande comício ou reunir uma multidão na esplanada dos ministérios. Segundo João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST, uma das entidades organizadoras da Marcha Popular, a idéia é "desenvolver uma nova prática política de relacionamento com o povo, através da pedagogia do exemplo". Em entrevista exclusiva ao Correio, o líder sem-terra explica o que é a Marcha Popular e o Projeto para o Brasil que está sendo elaborado pela Consulta Popular, uma iniciativa que reúne diversos partidos políticos e movimentos populares e que, silenciosamente, vem modificando a maneira de pensar a política no campo democrático popular. Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Correio: Os partidos de oposição reuniram no mês passado mais de 100 mil pessoas em ato realizado em Brasília. O que vocês esperam com a Marcha Popular a Brasília?

João Pedro Stédile: A principal característica é que estamos levando militantes, originários de diversos movimentos sociais, sindicalistas combativos, agentes de pastoral, movimentos de mulheres rurais, estudantes. São militantes oriundos de todos os estados do Brasil, que vão a Brasília não só para protestar, mas para discutir um projeto alternativo para o Brasil. E, na volta aos seus locais de militância, terão ainda mais elementos para continuar a discussão com a população. Nesse segundo semestre, conseguimos construir espaços de luta, conjuntamente com diversas entidades, como no Fórum Nacional de Lutas, na Semana Social da CNBB, na Coordenação Nacional do Grito dos Excluídos e na Frente dos Partidos de Oposição. Obtivemos esse avanço nesse semestre. E o dirigente, político ou sindical, que não compreender esse avanço, teimando em projetar sua luta pessoal ou a luta corporativa da sua organização, ficará para trás. Por esse calendário, tivemos a largada da Marcha Popular dia 26 de julho, e a coleta das assinaturas pela CPI da Telebrás. Depois, a chegada da Caravana dos cem mil, dia 26 de agosto. Logo após, o Grito dos Excluídos, dia 7 de setembro. E agora, teremos: a greve nacional dos metalúrgicos das montadoras, a greve nacional dos servidores públicos, a caravana pela educação pública e gratuita, dia 6 de outubro. E, no dia 7 de outubro, a chegada da Marcha Popular pelo Brasil. Depois, dia 12 de outubro, o Grito latino-americano dos excluídos, que organizará manifestações em algumas cidades da fronteira do país e em Brasília. E, finalmente, teremos no dia 10 de novembro a paralisação nacional contra a política econômica e social desse governo.

Correio: Qual é o objetivo da Marcha Popular em Brasília?

João Pedro O primeiro objetivo de realizar uma caminhada de 1580 quilômetros não é a chegada, é o percurso. Ou seja, o primeiro objetivo é desenvolver uma nova prática política de relacionamento com o povo. Queremos renovar os métodos de fazer política, através da pedagogia do exemplo. O segundo objetivo é o de discutir, ao longo da caminhada, a gravidade da crise que o país vive, e mostrar que há soluções, há saídas. Desde que o povo se una, e lute. O terceiro objetivo é o de refletir com os setores organizados de nosso povo, ir nos colégios, sindicatos, paróquias, igrejas, atos públicos, rádios, câmaras de vereadores, para dizer que é preciso construirmos um Projeto Popular. Para isso, o primeiro passo é derrotar politicamente o governo FHC. Tira-lo de lá. Mas, isso não é suficiente. O mais importante é construir um projeto político, que reorganize a economia brasileira voltada para os interesses da população. E que se garanta uma verdadeira democracia, onde o povo possa participar ativamente na definição dos destinos do nosso país. E que não seja chamado apenas nos períodos eleitorais. Por último, queremos, na chegada a Brasília, denunciar o intenso grau de subordinação do governo ao FMI. Hoje, a política econômica é ditada pelo FMI. A soberania do país, por obra de FHC, está ameaçada. A sociedade nem sequer teve o direito de saber o que o governo assinou no acordo com o FMI. Isso é uma vergonha. E nós queremos denunciar isso. Sem romper com o acordo do FMI, não haverá soluções para o país.

Correio: O que os marchantes discutiram com a população das 130 cidades pelas quais passaram durante a caminhada a Brasília?

João Pedro A primeira discussão foi a de compreender a natureza da crise econômica atual. Mostrar que esse governo já gastou 50 bilhões de reais, apenas no primeiro semestre, no pagamento de juros para os banqueiros nacionais e internacionais, e que, mesmo assim, a dívida interna e externa só aumentaram. Mostrar que a política econômica está numa enrascada, que torna nosso país refém e eterno espoliado pelo capital internacional. Para que a economia volte a crescer, é preciso romper com esses acordos, e reorganizar nossa economia. A segunda discussão foi a de mostrar como reorganizar nossa economia para que se garanta a TODO POVO, comida, moradia, trabalho, terra e educação. Discutiu-se que, para resolver esses problemas, que parecem tão simples e óbvios, só há um caminho: primeiro, o Brasil retomar sua soberania, ou seja, o povo brasileiro, organizado, retomar as rédeas do seu destino. Segundo, atacar os problemas pela sua raiz estrutural. Por exemplo, é preciso controlar o capital financeiro. O capital financeiro deve ser colocado no financiamento da produção e não na especulação. E, para isso, é preciso um controle rigoroso sobre os juros, sobre a remessa de divisas para o exterior. Por outro lado, é preciso democratizar o capital, iniciando pela reforma agrária, para democratizar a terra e reorganizar a produção agrícola. É preciso tomar medidas para democratizar a informação, ou seja, os meios de comunicação social de massa. Eles exercem um importante papel na nossa frágil democracia formal. Por isso, as televisões e rádios deveriam assumir o que está na Constituição, ou seja, serem de fato serviços de interesse público e não se converterem num meio de manipulação do povo, em prol dos interesses dos grandes grupos econômicos.

Correio: Como foi a resposta do povo nas discussões com os marchantes?

João Pedro: Foi impressionante. A população correspondeu e participou interessadíssima nesses debates. O povo está indignado. E o povo já tem uma consciência social suficiente para perceber que a saída não é mais obra de um salvador da pátria. Ela somente acontecerá se for uma obra coletiva. Mas, para isso, é preciso ir até o povo ajudá-lo a se organizar. Foi isso que a marcha quis fazer.

Correio: Em que consiste e quem comanda a Consulta Popular? Trata-se do "braço político" do MST?

João Pedro A Consulta Popular é um processo de discussão política, que inúmeros militantes, dos mais diversos movimentos sociais, sindicais, pastorais, estudantis e dos partidos oposições, resolveram fazer, a partir do final de 97, para debater um projeto popular para o Brasil. Percebemos que, em nossas organizações de massa, e mesmo nos partidos políticos em que estamos militando, não havia um espaço de discussão política profundo sobre os destinos estratégicos de nosso povo. Por isso iniciamos esse debate. Fizemos um primeiro grande encontro em Itaici, no final de 1997. Depois, as discussões foram reproduzidas nos estados, nos movimentos. Estamos produzindo uma série de materiais didáticos, em cartilhas, vídeos, para facilitar esse debate: que Brasil queremos construir? Já como fruto desse debate, percebemos que um projeto estratégico para o país não depende de declarações dogmáticas ou de nosso idealismo. Construímos a concepção de que a construção de um projeto popular seria o somatório, a complementaridade, de três aspectos fundamentais: Primeiro, a elaboração teórica, ou seja, a pesquisa e entendimento aprofundado sobre nossa realidade brasileira, aproveitando-se inclusive dos pensadores históricos, como Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, e tantos outros. Segundo, o estímulo à mobilização de grandes lutas de massa. Somente a mobilização popular constrói e altera a correlação de forças na sociedade. E, finalmente, a criação de uma organicidade entre os lutadores do povo, para ir tecendo uma rede que articule as lutas e as pessoas em torno do Projeto Popular para o Brasil.

Correio: A Consulta Popular pretende transformar-se em mais um partido de oposição?

João Pedro: A Consulta popular não quer se transformar em partido político. O problema do povo brasileiro não é falta de partido. Já temos muitos, no campo da esquerda, de várias matizes ideológicas. Portanto, nosso problema não é de partido. É por isso que, dentro da consulta, a maioria dos companheiros é também militante ou simpatizante de partidos políticos. Queremos construir um processo, um movimento, que articule os lutadores do povo, para um objetivo estratégico, que é a mudança real do país.

Correio: O programa da campanha de candidatura Lula/Brizola de 1998 não contempla o projeto popular para o Brasil que a Consulta Popular está tentando construir?

João Pedro: O programa da campanha Lula/Brizola era um programa para fins eleitorais. Projeto estratégico não tem caráter de campanha eleitoral. As campanhas e candidaturas podem estar articuladas com projetos estratégicos. Mas, infelizmente, o problema que os partidos de oposição enfrentam nesse momento é justamente esse, falta-nos um projeto estratégico, que possa orientar a ação tática, as campanhas eleitorais de cada um. Que podem e devem ser diferenciadas, por suas origens, características e base social, mas que deveriam acumular rumo ao mesmo objetivo. E é justamente porque os partidos de oposição ainda não têm uma concepção clara de projeto estratégico que acabam priorizando apenas campanhas eleitorais. E, por não termos um compromisso ideológico de longo prazo, os candidatos, lá na base, passam a se mover por interesses particulares e corporativos. E aí acabam aflorando vários tipo de desvios de comportamento, que infelizmente começam a ser registrados entre os partidos de oposição também - com práticas que antes estávamos acostumados a ver apenas nos partidos de direita.

Correio: Os textos da Consulta Popular mencionam a necessidade de romper com o FMI. Se isto acontecer, certamente haverá represálias. O Brasil sobrevive se a comunidade financeira internacional cortar os nossos créditos?

João Pedro: O rompimento com o FMI é acima de tudo uma necessidade, se quisermos continuar nos considerando, e sendo considerados, como nação. Se continuar essa ingerência, passaremos a ser de fato uma nova colônia dos Estados Unidos. Nenhum país do mundo se desenvolveu baseado em capitais externos. Mesmo no caso brasileiro, contrariando o que é alardeado, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, nosso nível de investimento é de aproximadamente 25% do PIB. Pois bem, destes, o capital estrangeiro entra com apenas 3%. Assim, se houvesse um ruptura, perderíamos isso. Pois o restante é poupança interna, de capital privado ou do governo. A paranóia que os meios de comunicação social difundem faz parte da propaganda. Afinal, esses meios estão diretamente subordinados aos interesses do grande capital Certamente haverá represálias. Daí, mais um motivo para politizar e organizar o nosso povo. Se ele souber por que e para que está lutando saberá enfrentar qualquer ofensiva dos países ricos. Inclusive, saberá dar uma resposta aos aliados internos do imperialismo.

Correio: A Consulta Popular afirma que o Projeto Popular para o Brasil é incompatível com o consumismo. Muitos analistas, no entanto, apontam o sucesso do Plano Real, em sua primeira fase, exatamente no crescimento do consumo entre as camadas mais pobres da população. O povo brasileiro é consumista?

João Pedro: Há dois aspectos que gostaria de comentar em torno dessa tese. O primeiro é de ordem econômica. Nós temos um enorme potencial em termos de recursos econômicos, naturais e populacionais, com mais de 160 milhões de habitantes. A prioridade de nossa economia é, acima de tudo, garantir que cada brasileiro possa comer o necessário todos os dias. Ter sua moradia digna, ter trabalho e igualdade de oportunidades na educação, ou seja, escola. Com isso, nem precisamos nos preocupar com a boa saúde, que ela será decorrência numa sociedade em que todos se alimentam bem, e vivem bem. Mas para que todos tenham tudo isso, que parece tão pouco, é preciso reorganizar a economia para produzir bens de consumo para todos, e não apenas para alguns. Não será possível as fábricas produzirem um automóvel por família, até mesmo porque seria inviável a vida no país. Mas é possível as fábricas produzirem trens, ônibus, metrôs, para que todos usem transporte de qualidade. Não é possível haver mansões luxuosas, mas é possível todos terem uma casa confortável. Portanto, a economia precisa ser reorganizada de acordo com as necessidades da maioria. Essa será a prioridade. O segundo aspecto é que o neoliberalismo projeta, através dos meios de comunicação, falsos valores, em torno do consumismo, do individualismo e do egoísmo. Ora, esses são falsos valores, que trazem conseqüências desastrosas para toda a sociedade. Porque o pobre, que não tem trabalho e não tem dinheiro, diante da avalanche da propaganda, buscará, nos meios ilegais e imorais, as únicas formas de poder consumir algo e de resolver, por conta própria, seus problemas. Por isso é que se propagam o tráfico de drogas, a prostituição, o roubo e o latrocínio, como pragas que destróem a sociedade no meio dos pobres.

Correio: O ex-ministro Ciro Gomes e seu guru Mangabeira Unger têm freqüentado as páginas dos jornais e revistas nas últimas semanas, apresentando propostas alternativas para gerar desenvolvimento econômico e fazer o país crescer. No que as propostas de Ciro/Mangabeira se diferenciam das que estão sendo levantadas pela Consulta Popular?

João Pedro: Mais do que comparar com a Consulta Popular é preciso compreender a natureza das propostas da dupla. Diante da gravidade da crise e da falência do modelo propagado pelo FMI-FHC, evidentemente que as elites começam a preparar alternativas, que signifiquem pequenas mudanças na política econômica, sem alterar o seu projeto estratégico. Ou seja, mudar algo, para, na essência, não mudar nada. Por isso Ciro Gomes defende mudanças na política econômica. Critica a incompetência de FHC, mas, na essência, é o mesmo projeto. Ciro é o Tony Blair que as elites estão construindo no Brasil, para substituir a Tatcher-FHC. E, daqui para diante, à medida que a burguesia paulista for se unificando em torno dele, seu nome estará cada vez mais presente na imprensa. Como disse antes, um projeto popular para o Brasil tem que controlar e democratizar o capital financeiro, tem que controlar as grandes fortunas, realizar uma efetiva reforma agrária e democratizar os meios de comunicação e a educação. Não é isso que Ciro representa. Ele representa o projeto de setores do empresariado que querem separar-se da direita atrasada brasileira. Esta está disposta a tudo. Ou seja, quer subordinar nossa economia ainda mais ao capital internacional, através da dolarização, do ingresso mais rápido na ALCA, na venda do que sobrou das estratégicas empresas estatais. Ela sabem que seguir nessa direção pode provocar uma verdadeira tragédia econômica, com conseqüências sociais e políticas semelhantes ao que ocorreu na Rússia ou na Indonésia. Por isso preparam uma alternativa que mude alguns aspectos da política econômica, sem alterar a essência. E, para fazer as mudanças insignificantes, serve o collorzinho do Ceará.

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