Fernando Pessoa, filólogo
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Por Gabriel Perissé
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Quando os escritores morrem (mesmo sendo imortais), começam a disputar com mais ardor um lugar no coração e na estante dos leitores vivos. "A competição entre os mortos é mais terrível do que a competição entre os vivos", escreveu Fernando Pessoa no seu Heróstrato. E não só por serem mais numerosos do que os vivos. Os mortos tornam-se mais ávidos de carinho, de admiração e de diálogo.

Os mortos, sobretudo se talentosos, dispensam a solidão e abominam o anonimato. Se astrônomos, querem ser planetas. Se médicos, querem ser hospitais. Se revolucionários, querem ser estátuas. Se engenheiros, querem ser usinas hidrelétricas. Se humildes, querem ser canonizados. Se ricos, querem ser biografados. Se músicos, querem ser interpretados. Se escritores, querem reencarnar diariamente na leitura que os viventes façamos.

Nessa luta pela sobrevivência post-mortem, o próprio Fernando Pessoa tem obtido contínuas vitórias. Sua obra multiforme será conhecida cada vez mais, em profundidade e extensão. Embora tenha escrito em português e publicado pouco durante a vida, Pessoa tornou-se e tornar-se-á cada vez mais internacional, intercontinental e intemporal.

 

A língua portuguesa é mais um livro desentranhado do tesouro que o Super-Camões nos legou. Recentemente publicado em cuidadosa edição, permite-nos saborear um pouco mais do pensamento e do estilo desse morto que vive mais e fala melhor que muitos vivos.

O livro ultrapassa os limites de um tratado lingüístico. É também invenção, confidência, provocação filosófica, experimento, malabarismo verbal. É de um cerebrismo que assusta. Repleto de convicções e conclusões firmes. Erudição não lhe falta. E tudo com a sobranceira consciência de um escritor que sabe o que quer: "a linguagem fez-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela."

Fernando Pessoa filólogo sonha e estrutura uma língua universal, talvez sem a ingenuidade dos adeptos do Esperanto e do Volapuque, mas certamente com o mesmo desejo de vencer as frustrações impostas pela Torre de Babel.

Há também considerações ortográficas. Interessantes... na medida, é claro, em que abstraímos do lado estéril dessas polêmicas e atentamos para a paixão intelectual empenhada na questão.

E há, o tempo todo, um espírito pessoano inconfundível a reger cada vírgula, cada frase, cada parágrafo. Eis o desejo de criar o mito da língua portuguesa como pátria do futuro. Um imperialismo imaginário — o que há de mais utópico e, afinal, de mais poético neste livro.

A língua portuguesa, Companhia das Letras, 1999, 200 páginas.

perisse@uol.com.br

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