Correio da Cidadania

Lei de Mídia argentina: muito mais que a rixa de duas facções do poder

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Em 10 de outubro último, o Senado argentino aprovou por ampla maioria de votos a nova lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, popularmente chamada no país de ‘Ley de Medios’. O ponto invejável é que ambos os lados se engalfinharam nas discussões da lei numa madrugada de sexta para sábado, o que no Brasil faria os jegues voarem. Calcada em dezenas de pontos, tem o claro intuito de descentralizar o poder monopólico de certos grupos da mídia e abrir espaço para um viés comunitário da comunicação, garantindo controle e participação social sobre a atuação da mídia.

 

A nova lei também serve para atualizar alguns parâmetros da comunicação contemporânea, até porque alguns deles nem podiam ter abordagem à época da legislação anterior, a lei 22.285, sancionada por ninguém menos que Jorge Rafael Videla e a sanguinária ditadura argentina - e eis o primeiro ardil da questionável cobertura do assunto pela mídia nacional: onde está a prosa de que se trata de entulho autoritário, tal qual se disse na derrubada da Lei de Imprensa verde e amarela, em meados de 2009?

 

"A nova regulamentação da mídia, além de limitar a presença de empresas nas telecomunicações, reserva dois terços das concessões ao próprio Estado e às ONGs, a serem escolhidas pelo governismo. Esse golpe rumo à estatização da mídia na Argentina torna-se agora objeto de batalha nos tribunais, pois empresas afetadas e líderes de oposição contestam sua constitucionalidade. Mas o governo Kirchner, com a lei, obteve uma plataforma adicional, ainda que provisória, para exercer o monopólio da chantagem, do arbítrio e da intimidação", decretou editorial da Folha de S. Paulo, em 13 de novembro.

 

Uma atenta leitura do parágrafo já desnuda a total tomada de partido por parte do informativo da Barão de Limeira. Apesar da tradicionalmente pesada rotulação (neste caso, de demonização eterna do Estado), o texto entrega o caráter de defesa dos interesses próprios ao falar em tom crítico da reserva de concessões a entidades sem fins lucrativos e comunitárias em detrimento do mercado, dono de 100% do espaço até então – a antiga lei exigia finalidade lucrativa. Sim, exigia.

 

Além do mais, ao longo das semanas, matérias e mais matérias vociferavam contra o projeto, ressaltando unicamente a renhida e interesseira, de lado a lado, peleja do kirchnerismo com o grupo Clarín. Trata-se de fato incontestável: os Kirchners fizeram altíssimas concessões ao grupo, inclusive de incentivo ao monopólio, e, ao se sentirem traídos na crise com os ruralistas locais, iniciaram uma implacável ofensiva, tanto pela tramitação da lei como através de provocações à empresa de comunicação.

 

O editorial do Estadão de 15 de outubro também faz a sua campanha. "Desde o último sábado, quando o Senado argentino aprovou por 44 votos a 24 (contundente e ignorada maioria) a chamada Lei de Mídia preparada pelo governo da presidente peronista Cristina Kirchner, a Argentina adquiriu a duvidosa distinção de se tornar o primeiro país democrático do Continente a instituir medidas cerceadoras da liberdade de imprensa e do direito à informação. A dupla tem aversão à crítica e ao dissenso. Contra o jornalismo independente, jamais hesitou em recorrer à chantagem e à truculência, além da manipulação deslavada das verbas da publicidade oficial para punir a divulgação de denúncias e premiar a docilidade".

 

Para aqueles que sofrem menos de influência ideológica de tais veículos, a argumentação soa a um esperneio de criança mimada indisposta a dividir o doce com a irmã menor (como a irresistível guloseima das verbas públicas em publicidade, esta sim uma participação estatal bem aceita). Pois já está mais que desmistificado o tal caráter ‘independente’ de nossa mídia, sabemos todos de seus descarados interesses políticos e econômicos, muito bem explicados em obras de especialistas de mídia e de fácil acesso pelo público. Quaisquer dúvidas, procurem algo sobre os quilombolas e suas reivindicações na Folha de S. Paulo de hoje. Ou da semana passada. Ou do mês passado. Ou do ano passado. E, comparando com a voz dada a alguns setores, veremos o pluralismo de idéias que perpassa as páginas do jornal.

 

Outro artifício malicioso é a dita defesa da liberdade de imprensa. Como explicou o pesquisador Venicio Lima em artigo publicado no Observatório da Imprensa, tal liberdade consiste simplesmente em poder imprimir, sem, no entanto, representar permissividade com o que se imprime. Portanto, liberdade de imprensa alguma está sob ataque, pelo menos quanto às denúncias vindas da boca de tais jornalões, que poderão continuar a ser rodados, distribuídos, vendidos e até lidos.

 

Além do mais, é sabido como nossos honoráveis barões da comunicação têm por hábito colocar no mesmo saco da liberdade de imprensa todas as demais, especialmente a de expressão, o que passam longe demais de garantir em suas páginas para que se apresentem como escudeiros da sociedade na defesa de tais valores. Aliás, empresas privadas com fins lucrativos nem sequer gozam de legitimidade para advogar comunitariamente.

 

E a favor, tem alguém?

 

Outro aspecto intrigante na cobertura da Ley de Medios é que o famoso ‘outro lado’, alvo até do marketing de veículos que ostentam orgulhosamente a premissa ensinada no primeiro dia de aula de qualquer estudante de jornalismo, desta vez parece ter saído de férias para Bariloche. Não se encontra, e pronto, ponderação alguma em favor da lei, muito menos uma análise mais minuciosa de seus pontos, preferindo-se apenas e unicamente ressaltar-se o conflito pessoal entre os K e o Clarin, joguete à medida para apresentar a lei como demoníaca e totalitária.

 

Do jeito que se apresenta o debate, tudo gira em torno desse, como dito, interesseiro confronto. No entanto, não parece absurdo pensar que o kirchnerismo se encerra mais dia ou menos dia, sendo apenas uma vertente do cenário político atual, enquanto a comunicação é algo muito mais intangível a qualquer sociedade. Dessa forma, uma abordagem que ignora as discussões de regulação social (e não estatal) do setor, distribuição mais democrática de concessões, desacopladas do poderio econômico, entre outras, só pode ser tachada de medíocre e reducionista.

 

Pesquisa publicada pelo Buenos Aires Econômico mostra que não são apenas os 44 senadores que se agradam com a idéia de novos parâmetros para a comunicação. Sua pesquisa continha duas perguntas: "Você é a favor de uma mesma empresa possuir um canal de TV de sinal aberto, vários a cabo, um jornal e uma rádio?". "Vê algum perigo em alguma empresa possuir todos esses meios?".

 

Dos 1200 entrevistados, 62,3% disseram discordar de tal situação, contra 24,4% de partidários da concentração; no entanto, apenas 12,2% responderam à segunda questão de maneira destemida aos monopólios, contra 58,2% de consultados antipáticos a esta prática. Mas nos jornais brasileiros nenhuma linha, nenhuma análise que fuja do eixo Kirchners-Clarin, nenhuma tentativa de enxergar pontos positivos para a população no que se refere ao acesso e também produção de novos conteúdos de mídia. Afinal, em tempos de vida online, já está ficando evidente que não são apenas as empresas tradicionais as únicas comunicadoras sociais.

 

Clarin perde. E o resto?

 

Para a jornalista argentina (e hoje assessora de senadora opositora ao kirchnerismo) Maria Victoria Richter, em entrevista ao também jornalista Rogério Cristofoletti, "o medo é de um setor da oposição que conta com apoio dos principais jornais, pertencentes aos mesmos grupos afetados, o que cria um clima de tensão compreensível quando são atingidos interesses econômicos tão fortes. É uma boa lei, amparada na legislação internacional em matéria de comunicação, e que recebeu o apoio de centenas de organizações sociais, de amplos setores da cultura, agremiações e universidades, além da relatoria de Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Unesco". Alguém ficou sabendo disso pelos nossos democráticos e pluralistas meios de comunicação?

 

"Se for aplicada, a lei pode transformar radicalmente o mapa dos meios locais. Além de gerar múltiplas fontes de trabalho e garantir um acesso mais democrático às concessões de radiodifusão", completa Richter.

 

Já o articulista do Critica Argentina Pablo Alabarces costura uma análise mais desapaixonada e à luz da realidade. "Essa lei trata de ampliar algumas possibilidades para que as vozes circulem; porém, o problema seguirá sendo quem pode tomar a palavra. Hoje temos a Ley de Medios, afortunadamente, apesar das campanhas vergonhosas de meios e corporações que não se caracterizaram, historicamente, por suas convicções democráticas ou seu respeito às liberdades. Tudo isso apesar da truculência do governo, empenhado em tirar sua legitimidade e consenso".

 

E para finalizar sua crítica, faz o que muitos comunicadores de nosso país também acusam por essas terras. "Um bom exemplo é o que acontece nessa semana com o ressurgimento dos protestos sociais. Justamente esse contraste demonstra meu argumento: da cobertura gigantesca dos protestos ruralistas passamos, sem demasiadas mediações, à estigmatização e condenação de todos os movimentos de protesto popular".

 

Críticas idênticas são feitas por setores marginalizados da mídia brasileira, que anseiam por novas discussões dos marcos de nossa comunicação, especialmente a poucos dias da 1ª. Conferência Nacional já feita sobre o tema. Apesar de o atual governo já ter promovido dezenas de conferências dos mais diversos segmentos, os veículos que se apresentam como bandeiras das liberdades insistem em esvaziar o evento, que ainda assim deve reunir de maneira quase inédita uma considerável gama de atores e interessados na comunicação. Não aceitam o debate aberto com a sociedade e fazem jogo duro sob a alegação de haver cunho autoritário na tentativa de debater a regulação do setor, praticamente inexistente com o fim da Lei de Imprensa.

 

A jornalista Maria Victoria Richter, por fim, explica o que o atual processo significa no país vizinho. "Pela primeira vez na Argentina discute-se que o espectro radioelétrico pertence a todos e que o setor privado não é proprietário do espaço comum, ainda que possa usá-lo. Os Kirchner têm uma forma questionável de gerir a coisa pública, sem muita transparência e com várias denúncias de exercer o poder pressionando aqueles que não se alinham. No caso da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, muitos que não comungam de suas particulares visões decidiram acompanhá-los porque reivindicamos historicamente (desde a redemocratização) uma lei que garantisse o acesso de todos os setores no processo da comunicação".

 

Como se vê, a nova lei não abrange apenas os passageiros e sempre negociáveis entreveros de facções poderosas do establishment, mas o interesse cada vez maior em novos dias para a comunicação e sua relação com o cidadão, o que vem ocorrendo quase simultaneamente em vários outros países do continente. O que os gigantes da mídia nacional parecem fazer é uma autêntica antecipação da discussão que, pressupõem, tem tudo para subir de temperatura no Brasil. E a Conferência Nacional torna-se o primeiro embate.

 

Gabriel Brito é jornalista.

 

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