A farsa de Hillsborough: vamos banir a polícia?

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Luiz Guilherme Ferreira e Alex Mirkhan
28/04/2016

 

 

 

 

A farsa de Hillsborough acabou definitivamente. Em 15 de abril de 1989, no estádio de Hillsborough, na cidade de Sheffield, a semifinal da Copa da Inglaterra entre Liverpool e Nottingham Forest teve de ser interrompida ainda no começo do primeiro tempo porque os torcedores estavam entrando no campo em função do excesso de gente nas arquibancadas. Inicialmente, a polícia tentou contê-los (que surpresa), mas depois de perceber que pessoas estavam sendo esmagadas contra as grades passaram a ajudar. Resultado: 96 mortos e mais de 700 pessoas feridas.

 

Este episódio foi a gota d’água para Margaret Thatcher, então primeira ministra da Inglaterra, que resolveu “dar uma resposta firme à sociedade”, no melhor estilo Geraldo Alckmin, ou seja, omitindo e mentindo. Transcrevemos um trecho nosso de 2013 que define bem o desenrolar desta tragédia: “no ano seguinte, ou seja, em 1990, saiu o famoso Taylor Report, o relatório oficial sobre o desastre, redigido por Lord Justice Taylor que então responsabilizou os torcedores do Liverpool pelos 96 mortos e tantos outros feridos. Nem é preciso dizer o por que o relatório ordenou, e foi atendido, que os setores dos estádios onde se assiste ao jogo de pé, semelhantes às nossas arquibancadas, fossem banidos dos estádios de toda a Grã Bretanha. Precisa dizer que depois disso os preços dos ingressos foram aumentando em progressão meteórica? Se continuássemos escrevendo aqui, falaríamos sobre como a criação da Premier League, impulsionada pelas televisões por assinatura, principalmente a Sky, tem uma relação gigantesca com toda essa tragédia programada, anunciada e mal resolvida”.

 

Esta foi a real dimensão do que ocorreu na Inglaterra, o divisor de águas no chamado “futebol moderno”. De lá para cá, vimos o modelo inglês se espalhar pelo mundo e o sinônimo de desenvolvimento ser as portas dos clubes abertas para o poder econômico, com a venda de nomes de estádios, nenhum lugar de pé, preços de ingressos caros e o afastamento da população de baixa renda das arenas esportivas em função da segurança – que combinada ao lucro ganha o selo de aprovação da FIFA.

 

A torcida do Liverpool sempre soube, os fãs de futebol idem e boa parte da imprensa inglesa também, mas só agora a justiça abriu os olhos para o óbvio: os 96 torcedores dos Reds não foram os verdadeiros culpados pelo episódio que entrou para a história do futebol como a “Tragédia de Hillsborough”. A “verdade”, como gosta de manchetar o tabloide The Sun, estava na cara desde o dia do incidente, e só agora, 27 anos depois, a justiça inglesa concluiu: a culpa toda foi da polícia e dos organizadores do evento.

 

Embora tardiamente, a absolvição da torcida que empurra o vitorioso time inglês, além de redimir familiares e amigos das vítimas, também ajudou a colocar muitos “pingos nos is” – afinal, agora está claro que a culpabilização das vítimas não só eximiu a polícia e o poder público como serviu de “mito fundador” para a reforma radical que modernizou e pasteurizou o futebol inglês.

 

A perversidade na construção dos fatos é algo que transpõe os alambrados destruídos de Hillsborough. Toda a farsa montada a visar a implementação de um modelo econômico e social não passa de repetição da atuação do Estado em muitas outras esferas. Podemos discutir eternamente o bem e o mal da administração socialista, neoliberal, ditatorial, democrática, mas sempre chegaremos à conclusão de que a possibilidade de administrar a morte permanece como pivô de toda a construção estatal.

 

Assistimos a estas perversidades nos nossos estádios também. A recente ofensiva do Ministério Público e da Secretaria de Segurança Pública contra as torcidas organizadas, em especial as do Corinthians, demonstra bem este fato. Do mesmo modo, é muito bem ilustrado que se tentou fazer um Hillsborough tupiniquim em 1995, na batalha entre Mancha Verde e Independente no Pacaembu, momento marcante do nosso futebol, com o início das proibições.

 

Só não passamos por um processo tão bruto e repentino de elitização em 95 porque nos faltava o poder econômico organizado para impulsioná-lo. Apenas a criminalização não foi suficiente e nem poderia. Talvez, possamos interpretar que o nosso Hillsborough foi a Copa do Mundo. Todos os elementos que marcaram a transformação do futebol inglês estiveram pelas bandas de cá desde que o país foi confirmado como sede do maior evento do ludopédio.

 

No início dos anos 90, Margaret Thatcher contou com a imprensa, o mercado e, principalmente, o medo estimulado na população inglesa para aplicar o seu tão sonhado “choque de gestão” no futebol daquele país. Obviamente, uma “revolução” dessas proporções não passaria despercebida pelo restante do mundo, como de fato não passou. Sobre as lápides dos mesmos 96 torcedores pisoteados até a morte também foram derrubados estádios e erguidas arenas no mundo todo.

 

Aqui se deu a mesma dinâmica, inclusive com a criminalização transcendendo os fãs de futebol e atingindo também os manifestantes contrários à Copa que ocupavam as ruas e questionavam os benefícios dela, porém, os permanentes culpados são e serão os integrantes das torcidas organizadas. Na época, fomos brindados com silêncios, promessas impossíveis de acreditar – como o desenvolvimento do futebol manauara ser alavancado pela Arena da Amazônia – e declarações desastrosamente sinceras, do tipo “não se faz Copa do Mundo com hospitais”.

 

As desculpas para privatizar totalmente o futebol – aqui, na Rússia ou na Argentina – serão sempre as mesmas: gestão, finanças, segurança, consumo, conforto, eficácia, planejamento etc., e num passe de mágica aquilo que vivemos antes nos estádios se torna perigoso e desorganizado, tudo impulsionado por um inimigo comum, aqui as organizadas, lá os hooligans.

 

Com a justiça inglesa apontando os reais culpados, o mito de que os estádios têm obrigatoriamente que se parecer com teatros, onde não há lugar para torcedor e sim para espectador, cai por terra. Anotando a tragédia na conta do mau comportamento dos torcedores, elitizou-se todo um esporte. Como fica agora, que finalmente a polícia e os gestores foram culpados pela Tragédia de Hillsborough? Vamos bani-los do futebol como aos outros setores unilateralmente culpabilizados? E por aqui, vamos comprar as mentiras do Estado até quando?

 

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Luiz Guilherme Ferreira é advogado. Alex Mirkhan é jornalista.

Texto publicado no blog Destilaria da Bola.

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