Futebol: a polêmica dos ingressos

0
0
0
s2sdefault
Irlan Simões
06/02/2015

 

 

alt
Como a volta de um cartola folclórico, o Vasco da Gama expõe 
os interesses escusos de dois tipos de dirigentes esportivos brasileiros.

 

A volta de Eurico Miranda ao comando do Vasco da Gama já anunciava um novo momento do futebol brasileiro em 2015. Se estávamos entediados com o novo perfil de dirigente de clube – esses yuppies-homens-de-negócio-visionários-empreendedores, que tantos andam se gabando de ser –, a volta de um cartola à moda antiga, como o vascaíno, era a certeza de que, no mínimo, os bastidores voltariam a ser um tanto quanto divertidos.

 

Não apenas pela primeira aparição pública do cartola mais polêmico do futebol brasileiro – o homem que interveio diversas vezes na coletiva de apresentação do treinador Doriva, reeditando sua postura autoritária dos anos 90. Eurico Miranda voltou disposto a causar problema com os atores econômicos que não existiam na sua época. Em especial, os novos cartolas do Flamengo e Fluminense e o Consórcio Gestor do Novo Maracanã.

 

Começou dizendo que o clube, que possui estádio próprio, não jogaria no Maracanã caso não se resolvesse o problema da posição da torcida do Vasco no estádio, pauta da torcida cruzmaltina logo nos primeiros meses de Maracanã. Apenas um indício do que viria depois.

 

Recentemente, em entrevista coletiva, Eurico Miranda se pronunciou de forma incisiva: “Vou antecipar uma posição do Vasco. Nesta situação não há hipótese de o Vasco jogar no Maracanã. O clube não se submete ao que o Consórcio determina. Não joga, mesmo que seja contra a Seleção Brasileira”. Eurico se referia à forma como o Consórcio vinha conduzindo as discussões que se instauraram no Conselho Arbitral do Campeonato Carioca de 2015, cujo ponta de lança foi o próprio presidente vascaíno.

 

Retrospectiva do imbróglio

 

Foi no dia 15 de janeiro, na reunião do Conselho Arbitral do Campeonato Carioca, na sede da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ). Uma proposta que partiu do Vasco da Gama propunha que não haveria venda de ingressos com valor inteiro, apenas bilhetes meia-entrada. Os valores seriam de R$5 entre os clubes de menor expressão, de R$20 quando um grande enfrentasse um pequeno e de, no máximo, R$50 quando se tratasse de um clássico entre os grandes.

 

Vasco e Botafogo estiveram juntos a todos os outros pequenos clubes, incluindo os mais tradicionais como o Bangu e Bonsucesso, e clubes-empresa, como Tigres e Macaé. A decisão incomodou Flamengo e Fluminense, clubes considerados principais “produtores de conteúdo” do Consórcio Maracanã.

 

Rubro-negros e tricolores lançaram manifesto conjunto, alegando insatisfação com a medida aprovada pela FERJ e os outros doze clubes. Curiosamente, o Consórcio Maracanã também assinou o manifesto, demonstrando haver uma relação íntima entre as três entidades. A nota reivindicava respeito a “preceitos básicos como cumprimento de contratos, liberdade, responsabilidade fiscal e financeira”, e manifestava discordância com o estabelecido quanto ao tabelamento de preços, meia-entrada universal, localização das torcidas, descaracterização do mandante da partida e imposição de prejuízo.

 

Os clubes alegavam, principalmente, que o padrão dos valores de ingresso estabelecidos para o Campeonato Carioca prejudicava-os, por conta das características de seus planos de sócio-torcedor, que garantia direitos especiais aos associados. Em suma, as três entidades alegavam que os assuntos referentes ao preço dos ingressos competiam a cada clube, mas no caso específico do Maracanã a última palavra ainda pertencia ao Consórcio, composto pelas empresas brasileira Odebrecht e a norte-americana AEG.

 

A resposta veio com uma carta surpreendente, divulgada no site da FERJ, utilizando uma linguagem muito semelhante aos movimentos de torcida contrários à elitização dos estádios, como num ato voltado a aproximar os torcedores da discussão. A nota é agressiva e aponta nomes e contradições da relação Flamengo/Fluminense/Consórcio, dando uma leve impressão de que foi redigida pelo próprio Eurico Miranda.

 

O documento é assinado por doze clubes: Bangu, Boavista, Bonsucesso, Botafogo, Cabofriense, Friburguense, Macaé , Madureira, Nova Iguaçu, Resende, Tigres do Brasil e Vasco da Gama. Um trecho em especial merece ser destacado:

 

A direção de um estádio, ao externar interesse nos resultados dos programas de sócio-torcedor de selecionados clubes, soa, no mínimo, como ‘estranha’, e a alegada ‘atenção a critérios para atratividade das partidas’ permite imaginar, nas diversas interpretações, que a atratividade restringe-se tão somente à intensidade do lucro que pode auferir com as partidas que lhe interessam, com tudo o mais relegado a plano secundário.

Tão estranha que não causaria surpresa nenhuma se fizesse parte do interesse dessa simbiose imaginar o Maracanã como investidor em clubes ou detentor de direitos econômicos de atletas, se é que já não o são”.

 

Após essa acusação, a nota volta a reivindicar que “a elitização não traz qualquer benefício ao Futebol Brasileiro”, além de fazer um ataque direto à lógica implementada pela nova gestão do Maracanã, cuja “voracidade financeira na busca incessante de lucro, rápido e fácil, não pode impedir uma tentativa de resgatar a presença de público nos estádios, através de ingressos promocionais e acessíveis a uma grande parcela da população, que se via impedida de frequentar os estádios pelos altos custos dos ingressos”. No mínimo, surpreendente.

 

A partir daqui, vale acompanhar os passos dados pelos meios de jornalismo esportivo ligados às Organizações Globo sobre o assunto, e a narrativa que tentaram impor a partir de reportagens e matérias que se relacionavam indiretamente ao assunto. Vale lembrar que, desde a época da construção das arenas para Copa do Mundo, a emissora serviu como assessoria de comunicação extraoficial dos consórcios. Sua postura diante do assunto tem sido bem clara quanto à defesa dos interesses dos novos gestores das praças desportivas.

 

A construção de uma narrativa como ofensiva

 

O segundo round dessa batalha começou em seguida. No dia 28 de janeiro, o Consórcio Maracanã voltou a se posicionar publicamente. Dessa vez o teor da carta ensaiou uma postura defensiva, afirmando a suposta condição do Consórcio como “um dos mais interessados em mudar o quadro histórico de pouca presença de público nas competições do nosso futebol nos últimos anos”.

 

Logo após, tenta-se justificar a não aceitação de um valor promocional dos ingressos: “É de conhecimento geral a crise de atratividade dos campeonatos estaduais em todo o país. E não é a adoção de preços irrisórios que vai levar o torcedor de volta aos estádios”. Alega-se que, caso fossem decretados os valores estabelecidos pelo Conselho Arbitral da FERJ, os “prejuízos seriam ainda mais acentuados, independentemente da quantidade de público que se conseguisse atrair”.

 

Por fim, o Consórcio aponta claramente que prefere o estádio parado do que recebendo jogos do campeonato carioca: “a realidade é que não cabem, num estádio de padrão internacional e com capacidade de 78 mil lugares, jogos pequenos com baixíssimo potencial de atratividade de público, como a grande maioria das partidas do atual Carioca”, afirma a nota, que alega custos mensais de 4 milhões de reais apenas na manutenção da Arena.

 

A ofensiva protagonizada pelo Consórcio reverberou no GloboEsporte.com e nas empresas irmãs do grupo. Em 29 de janeiro, o programa Arena SporTV lançou uma enquete sobre o motivo de os estádios estarem vazios. A violência volta a ser destacada como problema, ao lado do preço dos ingressos, da qualidade dos serviços e, por fim, da qualidade do espetáculo.

 

Um dos itens da enquete, claro, trata do tema da “violência”, retoma a velha tentativa de jogá-la na conta das torcidas organizadas e tenta implementar um programa de higienização dos estádios. Em paralelo, “formadores de opinião” voltam a condenar o futebol brasileiro por ser comandando por dirigentes “não-profissionais”.

 

Novos atores, Federações em xeque

 

Há pelo menos vinte anos, já se sabe que os campeonatos estaduais de futebol estão indo à falência e só existem por beneficiar as federações locais no jogo político de nível nacional, da CBF. Não é à toa que os clubes do Nordeste resgataram a Copa do Nordeste por fora das federações, para evitar que seu balanço financeiro do começo do ano fosse negativo.

 

As federações estão sem força porque a conjuntura é outra. Por mais que ainda sejam centrais na eleição da direção da CBF – e por conta disso sejam bajuladas com muito dinheiro quando os pleitos se aproximam –, a realidade é que os novos atores econômicos e o novo formato do futebol desequilibram essa estrutura burocrática do poder.

 

O que conta agora é o dinheiro e ele está, principalmente, na mão dos detentores dos direitos televisivos. Ninguém menos que a Rede Globo, que escolheu o lado que lhe parece mais pretenso a vencer, porque esse também simboliza o seu projeto de “modernização” do futebol brasileiro e de “valorização do produto futebol”.

 

A nova queda-de-braço pode anunciar um recomeço da discussão pelo fim dos campeonatos estaduais. De todos, apenas o Campeonato Paulista é financeiramente saudável, principalmente por ser repleto de clubes-empresas que possuem outros critérios para determinar “sucesso”.

 

É conivente à FERJ o atual imbróglio com o Consórcio Maracanã, por colocar a entidade novamente no centro das discussões e voltar a lhe garantir um espaço para imposição de poder.

 

Eurico Miranda, tão temido por clubes e federações, escolheu o lado que lhe permitisse usar e abusar das suas velhas táticas de desestabilização de adversários. Para quem duvidou (como esse que escreve), o velho cartola cruzmaltino já deu indícios de que o futebol brasileiro ainda é o mesmo dos anos 1990, só mudou o perfume.

 

Como diriam outros: as placas tectônicas se mexeram. As federações podem virar, de forma definitiva, os grandes vilões do futebol brasileiro por sustentarem os seus deficitários campeonatos estaduais, que também causam prejuízos aos Consórcios das grandes Arenas e aos clubes, cada vez mais “empresariais”.

 

Irlan Simões é jornalista e editor da Revista Rever.

Texto publicado originalmente em Outras Palavras.

0
0
0
s2sdefault