A crise do futebol brasileiro e o dilema da formação nacional

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Fabio Luis Barbosa dos Santos
19/12/2014

 

 

 

Introdução


Este artigo aborda a crise do futebol brasileiro evidenciada ao longo da Copa do Mundo de 2014, que culminou na derrota por 7 x 1 contra a Alemanha. Em inspiração braudeliana, o texto realiza o seguinte movimento: inicialmente, discute-se a relação entre globalização e o futebol mundial, enfocando seu impacto na América do Sul e no Brasil. A seguir, são reconstituídos os traços gerais das campanhas da seleção brasileira nas Copas recentes, para então focalizar a partida contra a Alemanha em que, no meu entender, explicitaram-se as diferentes dimensões da crise do futebol brasileiro, e de maneira concentrada. Na parte final do texto, comentamos a leitura da crise feita por jornalistas críticos vinculados ao canal ESPN, concluindo o artigo apresentando as linhas gerais da leitura histórica proposta. Minha hipótese é que a crise do futebol brasileiro é uma dimensão do dilema da formação nacional e, portanto, seu enfrentamento é indissociável da superação da dupla articulação entre dependência externa e assimetria social.

 

1 -  Estrutura: neoliberalismo e futebol

 

Embora a mercantilização do esporte seja inerente às relações sociais no capitalismo, este processo foi acentuado nos decênios recentes em diversas modalidades desportivas, em consonância com o “impulso acelerado em direção a um mundo sem fronteiras nem restrições para a acumulação de capital”, que se descreve como globalização (1). No futebol, seu marco político é a ascensão de João Havelange à presidência da FIFA (Fédération Internationale de Football Association) nos anos 1970, período em que se generalizou o consumo da televisão em cores. A popularização das partidas televisionadas franqueou novos horizontes de comercialização do esporte, desencadeando um processo muitas vezes descrito eufemisticamente como uma “profissionalização do futebol”, que corresponde à progressiva transformação de atletas, clubes e torneios em negócios, comandados na esfera internacional por esta entidade, em um ambiente mercantil notoriamente corrupto.

 

Este movimento mundial incidiu de maneira diferente em cada realidade nacional, como ocorre com a própria globalização. Seus efeitos na América do Sul, região que ocupa um lugar periférico nos dinamismos da internacionalização do capital, foram particularmente destrutivos para o futebol nacional. Este fenômeno se evidenciou no final do século 20, quando a conjunção entre o levantamento das barreiras protecionistas à importação de jogadores na Europa, a multiplicação das cifras envolvidas (em decorrência da progressiva mercantilização do esporte) e a concentração de capital em alguns clubes europeus acentuaram a volatilidade das equipes sul-americanas, cujos clubes se converteram em vitrines de jogadores exportáveis para os mercados centrais.

 

A partir de então, a rotina destes clubes tem se caracterizado pela instabilidade: o sucesso de uma equipe significa que seus jogadores principais serão negociados e, como consequência, o time é desmanchado. Isso ocorre em diversas escalas, uma vez que o processo de concentração de capitais se reproduz em dimensão regional. Assim, o Santo André que venceu o segundo jogo da final do Paulista de 2010 contra o Santos de Neymar, Ganso e Robinho se desfez entre diversos clubes brasileiros, remendando inclusive o Corinthians campeão da Copa do Brasil de 2009, que vendera André Santos, Cristian e Douglas em uma mesma semana. O fato de que os primeiros se dirigiram ao futebol turco e o último para Dubai indica que a exportação de jogadores deixou de ser um negócio restrito à elite do futebol, para se tornar um fenômeno diversificado e que tem múltiplas implicações, inclusive a naturalização cada vez mais comum de atletas do terceiro mundo e do leste europeu, que atuam em seleções europeias.

 

O impacto deste movimento mercantil na América do Sul foi duplo: de um lado, vendem-se não somente os melhores atletas, mas também os segundos e os terceiros melhores, e cada vez mais cedo. Assim, há jogadores da seleção brasileira da Copa de 2014 que não têm identificação com qualquer clube nacional, como David Luiz. Outra face deste fenômeno é a extinção da figura do ídolo como um jogador associado de maneira indelével a um clube, como Pelé, Zico ou Biro Biro. Restam goleiros, como Marcos e Rogério Ceni – jogador com nome e sobrenome em lugar do apelido, outra criação do marketing esportivo. Por outro lado, a instabilidade convertida em meio de vida inviabiliza a afirmação de um time, entendido como um grupo de jogadores que desenvolvem laços de confiança e cumplicidade ao atuarem constantemente juntos. O Flamengo de Junior, Andrade e Zico nos anos 1980 ou o São Paulo de Cafu, Muller e Raí dos anos 1990.

 

A drenagem de talentos aliada à impossibilidade de se formarem times é o que coloca em crise o futebol nacional na América do Sul. Na Argentina combalida pela crise econômica, os efeitos foram ainda mais devastadores, e uma das consequências do declínio dos clubes portenhos foi que equipes brasileiras, pela primeira vez, começaram a dominar a Libertadores da América. É verdade que jogadores sul-americanos sempre estiveram sujeitos à transferência ao exterior, e os times sempre mudaram. Mesmo o São Paulo do Mundial Interclubes de 1993 já não teve Raí, que marcou os dois gols do título do ano anterior, mas a base do time se manteve, reforçada por Leonardo. A novidade é a velocidade, que expressa uma mudança no sentido do movimento: subordinados à lógica mercantil do futebol contemporâneo, o clube sul-americano opera para negociar jogadores, preferencialmente com o exterior, em lugar de negociar jogadores para construir uma equipe. Em outras palavras, o time deixou de ser finalidade para tornar-se meio para um negócio.

 

Os grandes clubes europeus também são mercantis, mas seu negócio está vinculado a conquistas dentro de campo, que valorizam o clube enquanto “marca”, potencializando receitas vinculadas a esta grife em um mercado cada vez mais internacionalizado. Este foi o salto realizado nos Estados Unidos nos anos 1990, quando a associação entre a NBA (National Basketball Association), Michael Jordan, Nike e canais a cabo mundializou o mercado do basquete local (2). Em escala modesta e sujeito às pressões inerentes ao subdesenvolvimento, este raciocínio referenciou a manobra da diretoria do Santos, que pretendeu valorizar a imagem do clube ao manter Neymar como atração por um tempo mais.

 

A drenagem de talentos esvazia o brilho dos campeonatos locais como arte, enquanto a impossibilidade de formar times os condena enquanto esporte. Expressões articuladas de um mesmo movimento, sua consequência mais evidente é o abismo que se estabelece entre as equipes europeias e sul-americanas, constatado anualmente no Mundial Interclubes. Neste torneio, os campeões da Libertadores, quando conseguem chegar à final, adotam uma tática de guerrilha, retrancando-se na esperança de um gol de contra-ataque ou de uma vitória nos pênaltis, exatamente como fazem seleções de pouca tradição ao enfrentarem países consagrados na Copa do Mundo. Ou na linguagem do futebol, times pequenos jogando contra times grandes.

 

Mais grave, o desnível se explicita em uma comparação entre torneios nacionais ou continentais interclubes. Mesmo equipes europeias de poucos talentos ainda subsistem como times e isso incide no esporte. Deixando de lado questões como o preço dos ingressos e a precariedade da estrutura que assiste ao torcedor que frequenta o estádio, em um continente em que uma emissora determina o horário das partidas, é compreensível o esvaziamento dos estádios, concomitantemente ao crescimento da audiência televisiva dos campeonatos europeus. Na realidade, considero surpreendente que, nas circunstâncias, o desinteresse não seja maior. Certamente, isto está associado às carências socioculturais da realidade brasileira, em que a identidade futebolística ocupa um papel polivalente e que, em alguns aspectos, poderia ser comparado a igrejas neopentecostais.

 

Uma segunda consequência menos evidente do impacto da globalização é a crise do futebol brasileiro, compreendido como um estilo de jogar com características distintivas de outras partes do mundo, associado, em termos gerais, ao refinamento técnico, à criatividade e à ofensividade. Esta crise está relacionada aos dois processos articulados que descrevemos: de um lado, os entraves ao futebol nacional como esporte de equipe obstaculizam o cultivo de um estilo próprio. Por outro, a exportação em escala de jogadores cada vez mais jovens significa que estes atletas serão treinados e desenvolvidos para responderem aos requisitos do futebol europeu. Em outras palavras, não é tanto o futebol europeu que está se mundializando, mas o futebol mundial que está se europeizando, pari passu à chamada “profissionalização” do esporte.

 

No plano esportivo, este movimento se expressa em um esporte em que o preparo físico se tornou indispensável, acelerando a velocidade do jogo, mas também a ocupação dos espaços em campo, que parece se tornar cada vez menor. A falta de espaço limita as possibilidades de dribles, tabelas e chutes – em uma palavra, de criação de jogadas, ao mesmo tempo em que são recorrentes as faltas, seja em decorrência da própria dinâmica do jogo, seja por determinação tática –, por exemplo, para cortar um contra-ataque. Sob este padrão de jogo prevalecem virtudes associadas de forma genérica às escolas de futebol europeias, como a aplicação tática e técnica, a força física e a defensividade (3).

 

Esta tendência do futebol contemporâneo tem duas consequências principais: em primeiro lugar, escasseiam os gols. Considerando que o gol é o orgasmo do futebol, como diz Eduardo Galeano, temos um jogo cada vez mais marcado por aquilo que os estadunidenses descreveriam, em consonância com a metáfora do escritor uruguaio, como “foreplay” – ou seja, as preliminares. E que cada vez menos resultam em orgasmo. Apesar da marca de gols relativamente alta da recente Copa, nas partidas decisivas eles novamente rarearam: os semifinalistas somados marcaram sete gols no tempo normal dos oito jogos que disputaram ente as oitavas e as quartas de final, resultando em uma média inferior a um gol por partida entre as equipes vencedoras. E à parte o extravagante placar de Brasil contra Alemanha, não houve gols no tempo normal na outra semifinal, nem na final. Como que para compensar essa situação, alcançou-se o recorde de partidas decididas nos pênaltis, levando ao paroxismo outra característica do futebol contemporâneo: os gols de bola parada. Antes de se enfrentarem, Brasil e Alemanha tinham marcado metade de seus gols na Copa desta maneira.

 

Outro dado desta Copa indica que, na maioria das partidas disputadas, o time que teve maior posse de bola não venceu, sugerindo que a destruição da criação adversária frequentemente ganha jogos, quando não empata. O equilíbrio constatado em muitas partidas entre seleções de menor tradição e as consideradas “grandes” certamente está relacionado à generalização desta eficiência defensiva, uma vez que o futebol é o único esporte coletivo em que as equipes não têm a obrigação de atacar.

 

Esta tendência do futebol contemporâneo não parece incomodar a FIFA, que via de regra atua como um “aparelho privado de hegemonia” do futebol europeu. A entidade se revela avessa a considerar modificações nas regras que favoreçam a criação no futebol, como aumentar o tamanho do gol, modificar a regra do impedimento, diminuir o número de jogadores em campo, falta sem barreira como no futebol de salão, entre outras propostas ventiladas, por exemplo, pelo doutor Sócrates. No entanto, há poucos anos a FIFA proibiu a chamada “paradinha” na cobrança de penalidades máximas, uma prática tipicamente brasileira. Este é um tema que exige cuidado para não desvirtuar o esporte, mas é pertinente recordar que voleibol, basquete e futebol de salão, entre outras modalidades, modificaram suas regras dos anos 1980 para cá.

 

Por outro lado, a entidade tem se mostrado ativa no campo disciplinar, eliminando com o recurso a imagens televisivas a margem para qualquer manifestação de hostilidade entre jogadores ao longo do jogo, como sempre houve. Curiosamente, os dois casos famosos em Copa envolveram jogadores de reconhecido prestígio técnico, referências em suas equipes, agredindo zagueiros da seleção mais identificada com o futebol defensivo europeu, a italiana. Mais além do discurso do ‘fair play’, intui-se a intenção de cercear a espontaneidade do jogador, disciplinando-o na acepção foucaultiana do termo, que remete à produção de indivíduos submissos. Já a restrição às comemorações pretende inibir manifestações políticas, uma vez que um gol decisivo é objeto de grande visibilidade midiática, como também observou o maior intelectual orgânico do futebol brasileiro, o doutor Sócrates.

 

A segunda tendência decorrente do padrão dominante no futebol contemporâneo é quase um pleonasmo: a dominação dos clubes e seleções europeias. Os dois últimos mundiais viram naufragar a invencibilidade dos sul-americanos, primeiro em Copas fora da Europa, quando a Espanha venceu na África do Sul, e agora no continente americano, com o triunfo da Alemanha. Na realidade, com exceção da vitória do Uruguai sobre a Itália na primeira fase da Copa de 2014, com um gol de costas marcado pelo zagueiro Godín, em lance de bola parada, me parece que, desde a final da Copa de 2002, quando o Brasil derrotou a Alemanha, uma seleção sul-americana campeã do mundo não vence uma grande seleção europeia. Neste ano, o Brasil voltou a perder para a Holanda e a Argentina tornou a perder para a Alemanha como na Copa sul-africana, resultando em um placar agregado nos quatro jogos de 10 x 1 para os europeus.

 

É este período da história recente da seleção brasileira que agora abordarei.

 

2 -  Conjuntura: a seleção a partir de 2006

 

Em uma perspectiva de longa duração, o ponto de inflexão do futebol contemporâneo foi, na leitura de Sócrates, a vitória da Itália sobre o Brasil na Copa da Espanha de 1982, interpretada pelos coevos como uma derrota do futebol-arte. O próprio Telê Santana não foi imune ao vivido e, quando comandou a seleção na Copa seguinte, modificou parcialmente sua proposta de jogo. Também em 1982 houve a primeira partida decidida por pênaltis em uma Copa. No entanto, a semifinal entre Alemanha e França teve uma eletrizante prorrogação em que foram marcados quatro gols, mostrando que os tempos do “oxo”, como dizia meu pai, ainda não tinham chegado.

 

No entanto, focalizarei meus comentários no período que sucede a Copa de 2002, uma vez que é neste ínterim que se acentua o descolamento entre o futebol europeu e sul-americano. No nível dos clubes, em 2000 ainda foi possível para Vasco da Gama e Corinthians superarem Manchester United e Real Madrid em um torneio, fazendo uma final que a FIFA não esperava e não quis repetir, além do Boca Juniors ter batido o mesmo Real Madrid em solo japonês. Mas, daí em diante, nenhuma equipe sul-americana marcou mais do que um gol na final do Mundial Interclubes, e as poucas vitórias foram conquistadas em jogos de guerrilha, como fizeram São Paulo e Internacional em 2005 e 2006. Assim, relembrarei sumariamente aspectos da trajetória da seleção brasileira nas Copas de 2006 e 2010, para então abordar a partida contra a Alemanha em 2014.

 

No mundial da Alemanha em 2006, a seleção compareceu com o badalado quadrado mágico, composto por Kaká, Ronaldinho (considerado então o melhor jogador do mundo), Ronaldo e Adriano. O assédio em torno destes atletas era expressão de uma tendência que também se consolidava, incidindo no futebol brasileiro e na seleção: o jogador trabalhado como uma marca. O fenômeno não era novo, e ainda paira a suspeita de que a Nike esteve entre os interesses que intercederam pela escalação de Ronaldo na final contra a França em 1998. Mas na Alemanha a questão atingiu dimensões constrangedoras, evidenciadas quando Ronaldinho declarou, após o jogo de estreia, que não trocou de camisa com o rival croata que lhe ofereceu porque a guardaria para o museu. E que museu? Aquele que seu irmão e agente projetava construir, sobre a sua carreira... O atleta tinha então 26 anos.

 

Para agravar o quadro, a CBF negociou a “concentração” brasileira com uma cidade suíça, que transformou os treinos em espetáculo para o qual se cobrava ingresso e compareciam milhares de pessoas, entre torcedores, tietes e curiosos. Entre outras consequências, Sócrates observou à época que o ambiente de badalação estava tornando os jogadores e a comissão técnica infensos à crítica e à autocrítica, o que era trágico para um time que precisava evoluir.

 

Nesta Copa, explicitou-se que muitos jogadores tinham uma relação com a equipe balizada por projetos pessoais, o que significa que a seleção era encarada como uma plataforma de valorização de suas carreiras, na qual a projeção individual subordinava qualquer projeto coletivo. Recordes individuais foram quebrados por Cafu (maior número de jogos em Copa com a camisa brasileira) e Ronaldo (maior número de gols), dois jogadores que não estavam bem, embora não tão aquém como Ronaldinho, de quem tanto se esperava. Neste cenário, um lance no final do jogo contra Gana me marcou: o Brasil ganhava de três a zero, Cafu tinha a bola nos pés dentro da área e Ronaldinho a pedia, desesperado e livre ao seu lado. O capitão brasileiro optou por chutar direto (e perder o gol), em lugar de encher de moral o craque do time para o jogo seguinte, em que foram vencidos de forma melancólica pela França.

 

O diagnóstico da derrota foi universal: faltou liderança e garra. A imagem de Roberto Carlos levantando a meia resumia aquela seleção, talvez melhor do que o chapéu de Zidane em Gilberto Silva. O futebol de resultados de Parreira, exitoso em 1994, desta vez resultara em apatia. O antídoto vislumbrado pela CBF foi substituir o técnico de 1994 pelo capitão daquele time, personificação da liderança e garra que faltaram. E foi assim que Dunga tornou-se o comandante da seleção, sem jamais ter dirigido qualquer time.

 

O volante gaúcho implementou uma espécie de choque weberiano na seleção, reestabelecendo a disputa por posições no time. Jogadores que há muito consideravam sua escalação como cátedras, como Cafu e Roberto Carlos, não foram mais convocados. A perplexidade destes jogadores naquele momento é reveladora do autoengano que pode permear o ambiente da seleção, levada ao paroxismo na reação de Felipão diante de sua demissão pela CBF ao final da Copa recente. No entanto, o repertório weberiano logo revelou suas insuficiências (no futebol como nas ciências sociais, diriam os marxistas). E a permanência de Dunga no cargo esteve constantemente ameaçada, mas sempre garantida por algum desempenho excepcional, como a vitória sobre a Argentina por três a zero na final da Copa América de 2007, os gols de Luis Fabiano nas eliminatórias e as vitórias na Copa das Confederações em 2009.

 

A seleção que chegou à Copa da África do Sul tinha um ataque questionável, um meio-de-campo razoável, e uma defesa celebrada. Brasileiros consideravam Julio Cesar o melhor goleiro do mundo e a dupla de zaga, Lucio e Juan, também brilhava. Convencido de que esta seria nossa força, Dunga propôs um time marcador e convocou seis volantes. Praticando uma modalidade de futebol de resultados chegou às oitavas, quando o time fez seu melhor jogo, derrotando o Chile por três a zero. O primeiro tempo do jogo seguinte contra a Holanda foi excelente: o Brasil virou em vantagem e o adversário não ameaçava a meta brasileira. E foi aí que a defesa, que de fato ia bem ao longo da competição, falhou capitalmente não somente uma, mas duas vezes. Como resultado da ‘pane’ (esta sim, pode ser descrita como uma pane), a seleção se descontrolou emocionalmente e não reagiu. Foi uma derrota atordoante, porque foi na contramão do movimento do time na Copa, que estava em ascensão e dominava o jogo.

 

O desequilíbrio emocional é uma debilidade recorrente em esportistas brasileiros e que, na minha visão, está relacionada à pressão que os atletas se atribuem quando sentem representar um país carente, em todos os sentidos. Os erros que privaram a ginasta Diane dos Santos de uma medalha de ouro olímpica são emblemáticos. Mas, na seleção de futebol, a primeira Copa que o país perdeu na cabeça antes dos pés, das que eu vi, foi em 1998 na França. E desde então, este fator tem sido marcante.

 

Mas na partida contra a Holanda a equipe também foi penalizada por uma opção futebolística do técnico: ao convocar seis volantes, Dunga teve poucas alternativas quando Elano se contundiu e Ramires levou o segundo cartão amarelo. A equipe, que depositava as esperanças de criação em Kaká, recuperando-se de uma contusão, improvisou Daniel Alves no meio-de-campo, enquanto Ganso e Neymar, que surgiam em grande forma, ficaram no Brasil, entre outros. Uma declaração de Dunga um ano depois da Copa é reveladora das lentes com que vê o futebol: o ex-técnico sugeriu que Hulk, então despontando no Porto, seria o sucessor de Ronaldo na seleção.

 

Com a demissão de Dunga, a CBF pretendeu abrir a carreira ao mérito como fizera o treinador, convocando Mano Menezes, que se consagrava no Corinthians. Foi um momento fugaz: quando escândalos judiciais removeram Ricardo Teixeira da CBF, seu sucessor, paradoxalmente, interrompeu um trabalho decente em andamento, nomeando Luis Felipe Scolari e Carlos Alberto Parreira para dirigirem a seleção até a Copa no Brasil. Foi uma espécie de roque no xadrez: a entidade pretendeu blindar a si e à seleção de toda crítica, recorrendo aos dois treinadores campeões do mundo em atividade, ainda que decadentes. Também foi uma volta ao passado, uma vez que Parreira dirigiu a seleção derrotada em 2006 e Dunga, seu sucessor, tinha atributos de liderança similares aos de Felipão. Tratou-se de uma aposta conservadora, orientada por critérios de conforto político e relações públicas, que contou com o beneplácito de significativa parcela da imprensa esportiva. Deste ponto de vista, foi uma opção exitosa, pois a comissão técnica foi pouco perturbada, mas resultou na maior derrota da história do futebol brasileiro.

 

3 - Evento: Brasil x Alemanha

 

Sem disputar as eliminatórias por ser o país sede, a seleção amargou uma derrota na Copa América para o Paraguai e uma surpreendente vitória na Copa das Confederações, em um torneio em que tudo deu certo para a equipe. Mesmo sem jogar um grande futebol, os gols saíram cedo nas partidas, esvaziando a pressão, e Neymar protagonizou alguns dos seus melhores lances com a camisa amarela. A contundente vitória na final contra a Espanha, quando a seleção jogou bem, convenceu a comissão técnica de que o trabalho estava encaminhado. Retrospectivamente, sabemos que a Espanha já estava em um movimento descendente e que é necessário padrão de jogo para vencer em dias sem inspiração. Mas a sensação prevalente foi que Felipão encontrara o time e o time se encontrara, e que o incentivo de jogar em casa prevaleceria sobre a pressão.

 

Pela segunda vez consecutiva, a seleção chegou à Copa com uma defesa estrelada, exibindo a dupla de zaga mais bem paga do mundo, além de um craque que se esperava consagrar. As dificuldades perceptíveis nas partidas iniciais, em que um pênalti arranjado definiu o jogo contra a Croácia e os limites coletivos se evidenciaram contra o México, foram escancaradas nas oitavas contra o Chile. Ao final desta partida vencida nos pênaltis, o comentarista Paulo Calçade denunciava o desequilíbrio emocional do time, enquanto Paulo Vinícius Coelho dizia, na linguagem do videogame que estes jogadores falam, que o Brasil ganhara uma vida. Na partida seguinte contra a Colômbia, o time fez seu melhor tempo na Copa, quando a suspensão de Luis Gustavo obrigou a escalação de um meio-de-campo que tocava um pouco a bola, enquanto a troca de Daniel Alves por Maicon melhorou a metade direita do time. Neymar não brilhou e, assim como no jogo contra o Chile, os gols foram feitos por defensores em lances de bola parada.

 

Mas a partida mais extraordinária deste mundial foi a semifinal contra a Alemanha. Eu entendo que neste jogo se produziu uma aceleração do tempo histórico, fenômeno que, no terreno da política, caracteriza uma conjuntura revolucionária. Em alguns minutos durante o primeiro tempo desta partida, condensaram-se as contradições e vulnerabilidades que marcam o futebol brasileiro contemporâneo, em suas diferentes dimensões: estruturais, vinculadas ao dilema da formação nacional no contexto neoliberal; conjunturais, relacionadas ao impacto da prevalência econômica, política e cultural do futebol europeu; e episódicas, que remetem às debilidades particulares desta seleção e seu comando técnico. Neste momento, a crise foi escancarada e televisionada ao vivo para o Brasil e o mundo.

 

O Brasil começou o jogo mostrando iniciativa, mas também o limite dela: quando a bola estava na defesa a equipe não conseguia conduzi-la ao ataque, o que denunciava a fragilidade do meio-campo, prenunciando um jogo em que a seleção não controlaria o ritmo. A situação se acelerou a partir do momento em que Marcelo perdeu outra bola, resultando em um gol de bola parada que sintetizou nossas recentes eliminações: em um escanteio, como em 1998 (Zidane duas vezes), a bola atravessou a área como em 2010 (Sneijder, que mede 1,70m, primeiro com o pé e depois de cabeça), para Müller fuzilar solitário, como em 2006 com Thierry Henry. O segundo gol, logo a seguir, levou o time da apatia de 2006 ao descontrole de 2010. Subitamente, o elemento motivacional inerente à ideologia da “Família Felipão” ruiu. E o que sobrou em campo foram as fragilidades emocionais, táticas e técnicas deste grupo.

 

Em primeiro lugar, as limitações técnicas: Julio Cesar encostado no Canadá, não sabe sair do gol; Daniel Alves, foi tarde; Maicon, chegou tarde; David Luiz precisa entender que não existe salvador da pátria, no futebol como na política; Thiago Silva, o capitão que literalmente deu as costas para o time nos momentos difíceis; Marcelo, entregou várias rapaduras e não criou nenhuma; Luis Gustavo, destrói mas não constrói; Paulinho, sumiu; Hulk, é o camisa sete mais grosso que já vestiu a seleção; Fernandinho e Ramires, tentaram; William, não pôde tentar; Oscar foi que nem crédito de filme, apareceu no começo e depois do fim; Bernard, um menino no meio dos alemães; Fred e Jô, todo mundo conhecia. Neymar, após garantir a classificação, faltou três vezes na prova dos nove. Na última, com atestado.

 

O que essa resenha sumária e provavelmente injusta indica é que, para além das muitas limitações técnicas e táticas do treinador, o Brasil teve um elenco pouco talentoso em comparação com seleções passadas e de outros países. Pode ser sazonal, mas também é plausível que seja um sintoma de que a crise do futebol brasileiro atinge a raiz de sua projeção mundial: a produção de talentos.

 

Esta constatação problematiza o aspecto técnico mais criticado em Felipão e Parreira, que armaram um time no qual o meio-de-campo não cultivava a posse de bola nem armava jogadas, resultando em recorrentes “ligações diretas” de iniciativa dos zagueiros. Para todos aqueles que prezam o futebol técnico e valorizam a tradição deste esporte no Brasil, isso significa uma heresia capital, uma vez que o meio-de-campo é, ao mesmo tempo, o cérebro e o coração de uma equipe. Historicamente, sempre abundaram talentos no meio-de-campo e no ataque brasileiro, de modo que a seleção de 1970 jogou sem centroavante e, em 1982, Telê Santana foi criticado por insistir em Serginho, no time que tinha Falcão, Sócrates e Zico (4).

 

Mais recentemente, em 2006, o “quadrado mágico” não funcionou, mas era composto por talentos indiscutíveis no meio-de-campo e ataque. Em 2010, pela primeira vez, apresentou-se a defesa como principal trunfo da equipe, e meio-campistas disponíveis foram preteridos em nome de um futebol espelhando seu treinador. Mas, em 2014, a seleção convocada foi aceita com quase unanimidade pela imprensa esportiva brasileira, exceto pela convocação do zagueiro Henrique no lugar de Miranda. Ou por não levar um jogador talentoso e experiente para compor o grupo, como Robinho. Mas estas foram críticas marginais, indicando que, diferentemente de outras circunstâncias, não havia muitos outros talentos a serem considerados, drama que se explicitou na escolha dos centroavantes.

 

A limitação do elenco foi agravada pela pobreza inventiva da comissão técnica, além do seu atraso técnico e cultural. O descompasso entre jogadores que atuam na Europa e técnicos informados pela realidade futebolística nacional em declínio se aguçou. Nunca houve alternância de esquema, e as substituições trocavam seis por meia dúzia. O incrível Hulk foi justificado porque Daniel Alves era fraco na cobertura, e a solução óbvia para este problema, que seria substituir o segundo, só surgiu na quinta partida, em que a ausência de Luis Gustavo mostrou que um outro meio-de-campo era possível. Diante da ausência de Neymar foi escalado Bernard, provavelmente com a intenção de mobilizar a torcida no Mineirão, revelando mais uma vez a prevalência dos fatores motivacionais como estratégia.

 

Mais além da escalação, para a qual cada brasileiro tem uma ideia própria, preocupou a irritação que emanava do treinador nas entrevistas coletivas, sugerindo que ele próprio sucumbia à pressão, traindo a principal virtude que lhe era atribuída. A incapacidade de liderar uma equipe submetida a expectativas maiores que ela foi escancarada na partida contra a Alemanha, quando os limites técnicos do voluntarismo de Felipão somaram-se à apatia que caracteriza as equipes de Parreira, atingindo o paroxismo.

 

IV. Leituras da crise: o jornalismo esportivo crítico

 

Houve diversas chaves de leitura sobre a derrota e a resposta a ser construída. Felipão saiu-se com a noção de “pane”, que corresponde na economia política a leituras que atribuem as crises do capitalismo a fatores conjunturais e que, portanto, poderiam ser evitados. Esta perspectiva sequer admite a necessidade de alterar o comando técnico da seleção, quanto menos mudanças profundas na condução do esporte nacional.

 

No extremo oposto, comentaristas esportivos, vinculados principalmente à ESPN, que praticou uma cobertura por momentos bastante crítica e corajosa em relação à seleção brasileira, defenderam a tese da “modernização” do futebol. O comando da equipe deveria ser entregue a um técnico estrangeiro, como Guardiola, e mudanças na estrutura de poder do esporte no país são necessárias. O caminho seria a profissionalização da gestão esportiva, que, como sugeri, é um eufemismo para a ulterior mercantilização do esporte. O horizonte civilizatório desta proposta é que o país deixe de ser um exportador de jogadores, voltando a ser um produtor de futebol. O clamor por um empresariado esportivo profissional em oposição à cartolagem presente remete à procura de uma burguesia nacional como ator histórico da revolução burguesa no Brasil, uma busca que, desde o golpe militar de 1964, perdeu qualquer lastro na realidade do país, como mostrou Florestan Fernandes.

 

No contexto atual, a saída empresarial para a crise do futebol brasileiro ressoa ao discurso neodesenvolvimentista de ideólogos do petismo, caracterizado por uma retórica descolada do movimento objetivo da realidade. Em consonância com esta perspectiva, o debate nesta emissora sobre a dimensão política da Copa aceitou os termos colocados pelo governo, que, por sua vez, replicava a visão da FIFA, resumindo-se a avaliar se a Copa deu ou não certo do ponto de vista da infraestrutura. Este enfoque oculta os nexos entre realização mercantil e exploração do trabalho, insinuando uma identificação entre sucesso mercantil da Copa e interesse nacional, questionável em numerosas dimensões, como fizeram milhares de brasileiros nas ruas. Nesta perspectiva, o sucesso da Copa esteve associado ao silenciamento do protesto popular, cujo espectro esteve sempre presente. No plano da economia política, a problemática correspondente é o chamado “mito do desenvolvimento econômico” denunciado por Celso Furtado ao mostrar que, em países como o Brasil, o crescimento econômico se assenta em um agravamento da concentração de renda, acentuando as disparidades socioeconômicas características do subdesenvolvimento.

 

Os comentaristas esportivos progressistas não são alheios às ambiguidades inerentes a uma saída empresarial para o futebol brasileiro, mas são incapazes de radicalizar a crítica, uma dificuldade que, longe de ser exclusiva, permeia o pensamento crítico no país em todas as esferas. Aqueles que defendem a mudança social e conhecem os bastidores do esporte são obrigados a reconhecer que não houve qualquer esforço das gestões petistas em modificar o padrão CBF de fazer negócios - ao contrário, houve cumplicidade. O desinteresse do governo federal em mexer nas relações de poder no esporte brasileiro (e mundial) corresponde à sua impotência para modificar a política econômica, as relações de trabalho, a questão agrária, a devastação ambiental, a corrupção, entre outras.

 

Em suma, é apenas mais uma expressão do caráter conservador das gestões petistas, que ambicionam fazer do Brasil um ‘global player’ na geopolítica contemporânea, sem alterar as relações de produção e o padrão de inserção internacional da economia nacional. Expressão ideológica de autoengano, não admitem que o seu ‘capital’ ou ‘poder de barganha’ deriva do entusiasmo da ‘comunidade internacional’ com aqueles que fazem pela esquerda o que antes só se fazia pela direita. Isso é chamado de ‘responsabilidade’ e foi premiado com um lugar na OMC para o Chile, uma Copa para Mandela e uma Copa e uma Olimpíada para Lula.

 

Confrontados com a promiscuidade das relações entre PT e CBF, a plataforma modernizadora dos comentaristas críticos vai encolhendo ao longo do debate que eles mesmos estabelecem, redundando, ao final, em uma discussão em torno de um novo técnico e quem sabe, um novo dirigente. De todo modo, a discussão é abreviada pela dinâmica da indústria do entretenimento, uma vez que, apesar do protesto de Kfouri e Trajano, o balanço da Copa foi retirado da pauta no dia seguinte ao final do evento, posto que o campeonato brasileiro recomeçaria em três dias. São os limites do debate crítico em um canal que pertence à Disney.

 

V. Futebol brasileiro e formação nacional

 

Na minha visão, a crise do futebol brasileiro está referida à problemática da formação nacional, que se coloca para os países latino-americanos como a necessária superação do legado colonial, consubstanciado na articulação entre dependência externa e assimetria social, como condição para o estabelecimento de sociedades relativamente homogêneas do ponto de vista social, democráticas no plano político, autodeterminadas na esfera econômica e auto-referidas na dimensão cultural. A premissa subjacente é que o passado colonial deixou como legado sociedades organizadas a partir da finalidade precípua de explorar o trabalho e os recursos naturais em benefício de interesses mercantis alheios e, portanto, incapazes de controlar o seu destino histórico.

 

Nesta perspectiva, que informou a obra dos principais pensadores brasileiros no campo democrático no século 20, a consumação da nação supõe uma inversão na forma de inserção das sociedades periféricas no sistema capitalista mundial, subordinando os fluxos de mudança social provenientes do centro às necessidades do conjunto da população. Em um contexto histórico marcado pela polarização entre um centro capitalista dinâmico hegemônico e uma periferia que lhe segue a reboque, o Estado surge como instrumento necessário para estabelecer algum nível de controle sobre a irradiação dos fluxos de inovação social no âmbito do espaço nacional. Nesta circunstância, superar o sentido da formação colonial equivale a afirmar as bases sociais, econômicas e culturais do Estado nacional.

 

Subjacente ao processo de formação da nação brasileira vige uma tensão, entre a lógica de negócios do capitalismo mundial, cujos interesses encontram base de apoio em setores das sociedades periféricas, e os interesses da nação, ensejando subordinar o trabalho e as riquezas naturais aos anseios e necessidades do conjunto da população. Na história recente, o movimento orientado a assumir o controle sobre o próprio destino através da consolidação do Estado nacional retrocedeu dramaticamente, com a generalização de políticas associadas ao neoliberalismo no Brasil e na América Latina a partir dos anos 1990. Este processo teve entre suas consequências principais a precarização das relações de trabalho e o agravamento da desigualdade social; a desnacionalização industrial e a desindustrialização do país; o crescimento da exportação de gêneros primários agrícolas e minerais, cuja exploração agrava os problemas socioambientais; a generalização de referências culturais estrangeiras, sobretudo estadunidenses. Em uma palavra, as tendências associadas à crise do Estado nacional na América Latina desencadearam um processo com as características de uma reversão neocolonial.

 

No futebol brasileiro, este processo resultou em uma intensificação da exportação de jogadores em detrimento da formação de equipes enraizadas no espaço futebolístico nacional, em consonância com o movimento de exportação de gêneros primários e a desindustrialização que afeta a base produtiva do país. A volatilidade dos times é a expressão, no futebol, da instabilidade que caracteriza o espaço econômico nacional em tempos de dominância do capital financeiro. Em suma, a crise do futebol brasileiro é uma dimensão da crise da própria nação.

 

Em consonância com este diagnóstico, a revitalização do futebol brasileiro, assim como o enfrentamento da questão agrária, por exemplo, supõe retomar o processo de formação da nação, o que significa superar a articulação entre dependência externa e assimetria social, estabelecendo as condições para controlar o tempo e o ritmo da inovação social. Do ponto de vista do futebol, este processo envolve, em primeiro lugar, enfrentar a instabilidade que inviabiliza a consolidação de times. Este propósito exige medidas em dois planos: cercear a penetração do capital estrangeiro no futebol brasileiro, ao mesmo tempo em que se criam as condições para o desenvolvimento da cultura futebolística nacional. Altos tributos na venda de atletas para o exterior, tributação sobre os rendimentos auferidos por este atleta, preferência de compra por clubes nacionais ou sul-americanos, cotas máximas para a exportação anual de jogadores por clube, são algumas medidas na primeira direção.

 

Ideias que estimulam o enraizamento de uma cultura futebolística nacional incluem campeonatos organizados com antecedência e regularidade, em que o interesse do torcedor que frequenta o estádio prevaleça sobre o da televisão. Contratos de trabalho estáveis para técnicos e jogadores e um calendário que respeite o descanso semanal e as férias. Instrumentos de regulamentação de salários máximos e mínimos. Eleição direta do técnico da seleção brasileira em votação de técnicos e jogadores, com mandato de quatro anos. Mecanismos que estimulem a competitividade regional e nacional entre os clubes, como o sistema de “draft” prevalente em esportes nos Estados Unidos (que está associado a uma vivência universitária utópica por aqui), que distribui as revelações do esporte amador entre os clubes profissionais, priorizando os que mais precisam de reforços. Subjacente a políticas com esta orientação, está um relativo equilíbrio nas receitas dos clubes, o que pode ser garantido com mecanismos distributivos das principais receitas, como as transmissões televisivas. O processo de concentração de renda e torcida, que levou inevitavelmente à conquista de uma Libertadores pelo Corinthians, deve ser combatido, em nome da competitividade do esporte e da integração nacional, ou regional: afinal, os dilemas que afligem o futebol brasileiro são comuns ao continente sul-americano e em particular, à Argentina.

 

É evidente que este elenco de sugestões, que ocorrem a alguém que não é especializado nos meandros do futebol profissional, mas que enxerga de modo cristalino a conexão entre as dimensões esportiva e social da crise nacional, é incompatível com a atual estrutura de poder que comanda o futebol brasileiro, e exigiria a sua democratização. Ao subordinar a dinâmica do esporte ao interesse nacional, em particular aos jogadores, técnicos e torcedores, podemos antecipar que a relação com a FIFA seria afetada. Seria desejável aliados em outros países, afinal muitos dos problemas que atingem o futebol contemporâneo, como a falta de gols ou as contusões por excesso de trabalho, são internacionais. Que jogador gostou de jogar a Copa no Brasil às 13hs, voando de cidade a outra?

 

Dizer o que precisa ser feito não significa que seja fácil, mas, sim, que existe alternativa. O caminho aqui esboçado se contrapõe à saída empresarial, avançada sob a égide da modernização. Porque a “modernização”, ainda que bem sucedida, pode resgatar a competitividade da seleção brasileira, na medida em que um treinador europeu organize com sucesso uma equipe de brasileiros, que joguem europeu. Mas pouco fará para reestabelecer o futebol brasileiro, que, como sugere Romário, é um patrimônio cultural imaterial do país.

 

Na perspectiva da formação nacional, Celso Furtado também criticou a ideologia da modernização, que o economista paraibano definia como a adoção de padrões de consumo sofisticados sem o correspondente processo de acumulação de capital, e progresso nos métodos produtivos. Na sua visão, o subdesenvolvimento é caracterizado por um descolamento entre padrão de consumo e base produtiva, enquanto a integração nacional supõe um movimento em sentido contrário: a adequação entre os anseios do conjunto da população e a sua base material (5).

 

Entendo que não há outro caminho para cultivar o futebol nacional, assim como não o há para a própria nação. O brasileirão nunca será a NBA, nem a NFL, embora um campeonato bem jogado certamente atrairá o interesse de telespectadores de outros países. Não é possível um campeonato brasileiro disputado por vinte Real Madrids, já que nem a economia europeia comporta este padrão. Mas podemos ter vinte Borussia Dortmund: equipes entrosadas e talentosas, que cultivam o futebol nacional de alto nível, em salários compatíveis com a realidade nacional.

 

VI. Conclusão

 

A Copa deu certo para a FIFA e o PT: estádios em pé, aeroportos funcionando, turistas se divertindo. Brancos badalando nas arquibancadas, negros sossegados na TV. Nos gramados, jogos disputados e com gols, surpreendendo a todos. E quando a Copa parecia “dar certo” dentro e fora de campo, produziu-se um desenlace paradoxal e inesperado para os brasileiros, que escancarou uma crise profunda de sua expressão cultural mais querida.

 

Pode ser que o futebol brasileiro não volte a ser o melhor do mundo, não importa. Tampouco importa ser ‘global player’, pois, como canta Noel Rosa, ‘a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também’. Mas é preciso reviver esse futebol, porque faz parte do viver brasileiro. É a nação que pede passagem.

 

Este texto foi escrito em memória de Plínio de Arruda Sampaio, craque da política nacional, que pediu passagem no momento em que a derrota para a Alemanha acontecia, consumando a associação entre sua trajetória pessoal e a nação brasileira, até no luto.

 

Notas:

(1)             PANITCH, Leo; LEYS, Colin (eds.). O novo desafio imperial. Buenos Aires: CLACSO, 2004.

(2)             LaFEBER, Walter. Michael Jordan and the new global capitalism. New York and London: W.W. Norton & Company, 1999.

(3)              Evidentemente, esta caracterização é genérica e há diversas seleções europeias que não se enquadram, como a Holanda dos anos 1970 ou a Alemanha recentemente campeã.

(4)              SALDANHA, João. O trauma da bola. São Paulo: Cosac Naify, 1992.

(5)             FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

 

Fabio Luis Barbosa dos Santos é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo.

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