Correio da Cidadania

2020: “Não se trata mais de ganhar eleições, mas construir uma nova história a partir de baixo”

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Sob o signo do cansaço e da descrença, 2020 começa com as mesmas pautas privatizantes e reajustes em serviços já privatizados que marcaram os últimos três anos de radicalização neoliberal. No plano externo, as revoltas populares nos países vizinhos – e também globalmente - e tensões belicistas no Oriente Médio continuam. Enfim, uma crise generalizada que torna tudo imprevisível, expressa a exaustão de um modo de vida e “prefigura uma mudança civilizatória”, como afirma Alberto Acosta, economista e ex-presidente da Assembleia Constituinte do Equador, primeiro entrevistado do Correio no ano.

Crítico dos mais contundentes das esquerdas que governaram países latinos, em especial pelo seu método de desenvolvimento econômico, Acosta explica por onde se deu a brecha do retorno das direitas: “os progressismos não deram passagem às transformações estruturais que permitiriam – ao menos começar a – construir bases econômicas, sociais e políticas mais sólidas para a superação da dependência extrativista e suas sequelas. Tampouco se afetaram as estruturas próprias de acumulação de capital, exacerbada pelos extrativismos descarados: mineiro, petroleiro, agroindustrial... Além disso, com suas políticas de disciplinamento social e de criminalização dos defensores da natureza, debilitaram as bases da organização social, afetando aqueles grupos que outrora enfrentaram o neoliberalismo”.

Um dos principais construtores do movimento Aliança País que elevou Rafael Correa à presidência do Equador e presidente da Assembleia que outorgou a este país uma nova Constituição, Alberto Acosta viveu por dentro o processo de burocratização e afastamento dos movimentos populares das esquerdas hegemônicas no continente. Entusiasma-se, mas não se ilude, com os recentes levantes populares, que a seu ver reforçam que toda uma sociabilidade e um modelo econômico se esgotaram no tempo.

“Este é o maior potencial: a surpresa como uma ferramenta indispensável para conseguir avançar, o que será duradouro sempre que a sociedade em movimento mantiver elevada a criatividade e, certamente, que exista clareza nos objetivos estratégicos a serem alcançados, o que, insistimos, não podem ser simples reedição atualizada de velhas propostas, e menos ainda a repetição cansada das mesmas táticas. Apesar de saudar os mencionados levantes, em nenhum caso emergem dali mecanicamente saídas democráticas claras”.

Autor do livro O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos e Pós-extrativismo e decrescimento, Acosta alerta para o espectro da militarização em todo o continente e fornece alguns elementos que enxerga como fundamentais à construção de um novo momento político positivo para as massas.

“Definitivamente, o que está claro é que a premissa descolonizadora e despatriarcalizadora, elementos fundamentais na superação da exploração do ser humano e da natureza por parte do capital, demanda refundar os Estado-nações coloniais, oligárquicos, capitalistas para que estas transformações não fiquem simplesmente nos discursos. Não se trata de simplesmente ganhar eleições para acessar o poder, mas construir um poder desde baixo, desde a esquerda e sempre com a Pachamama (mãe terra) para impulsionar um processo de radicalização permanente da democracia”.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O chamado fim de ciclo dos governos progressistas foi sucedido pelo retorno das direitas, em alguns casos, como no Brasil, as mais reacionárias e virulentas desde o fim da ditadura militar. O que explica essa dinâmica em sua visão e o que podemos colocar como expectativa geral para 2020?

Alberto Acosta: Para entender o que acontece nestes momentos na América Latina, sobretudo em países onde a direita substituiu – em alguns casos de maneira incrivelmente acelerada – governos progressistas, como nos casos de Brasil e Bolívia, caberiam perguntas complementares: por que se derrubaram tão rapidamente estes processos? Como se explica a ascensão de uma ultradireita que já deixou de dissimular ou esconder, com prédicas homofóbicas e racistas, suas propostas autoritárias, conservadoras e também neoliberais?

Para além das indiscutíveis ações desestabilizadoras do Império, as quais se soma a influência da “internacional cristo-neofascista”, nas palavras do teólogo espanhol Juan José Tamayo, algo não funcionou na América Latina progressista nos anos anteriores. Falou-se muito de revolução e socialismo, inclusive de democracia. Sem a pretensão de esgotar o tema, é evidente que os governos progressistas não conseguiram democratizar suas sociedades, em alguns casos até pulverizaram a institucionalidade política a que propuseram mudar através de processos constituintes, como na Venezuela e no Equador.

A corrupção esteve presente de maneira deslavada em toda a região, inclusive em tais governos. E o desejo de se sustentar no poder contribuiu com a configuração de regimes caudilhescos e autoritários, que em alguns casos para se manter terminaram pactuando com forças conservadoras e da direita corrupta, como sucedeu no Brasil nas alianças do PT com o PMDB.

Mas há mais coisas de fundo. Os governos progressistas não tentaram superar as tradicionais estruturas de suas economias primário-exportadoras, pelo contrário, aprofundaram-nas: os extrativismos foram a fonte de renda para sustentar esquemas neodesenvolvimentistas e ampliar as políticas sociais, dentro de um marco de crescente consumismo financiado, enquanto durou o ciclo de preços altos das matérias primas.

Em suma, o financiamento de tais economias repousou mais e mais nas exportações primárias e na captação de investimento estrangeiro, aceitando-se uma inserção subordinada no comércio global e, de passagem e na prática, uma ação limitada do Estado; a ampliação dos extrativismos veio de mão dada com claras tendências desindustrializantes e um aumento da fragilidade financeira. E como bem sabemos consolidaram um Estado não só rentista, mas práticas empresariais rentistas, esquemas que vêm acompanhados de relações sociais clientelistas e governos autoritários. O resumo é: mais extrativismo, menos democracia, independentemente de se tratar de governos neoliberais puros ou progressistas.

Para completar este cenário, com os governos progressistas não se afetou a lógica de acumulação de capital: apesar de ter reduzido a pobreza enquanto houve recursos para sustentar as políticas sociais e o consumismo, a concentração da riqueza alcançou níveis cada vez maiores (tendências que se registraram também em países de governos neoliberais).

Como anotamos com Eduardo Gudynas – ao buscar as causas para entender a derrota do PT no Brasil e as sequelas do triunfo de Bolsonaro para a região – tudo isso explica porque o neodesenvolvimentismo – enquanto durou o largo ciclo dos altos preços das matérias primas – foi apoiado tanto por setores populares como por parte da elite empresarial: “Lula da Silva era aplaudido, por razões diferentes, tanto em bairros pobres como no Fórum Econômico de Davos”.

Na prática funcionou um dos dispositivos que o capitalismo possui para construir hegemonia através da capacidade – em especial durante o auge do ciclo capitalista – de reduzir a desigualdade entre trabalhadores sem tocar na desigualdade entre estes e as classes dominantes; tal capacidade se reconhece como – no dizer do grande economista peruano Jürgen Schudt – a hipótese do “focinho de lagarto”: um focinho composto por uma mandíbula superior que reflete a alta desigualdade da riqueza, a qual possui uma rigidez (quase estrutural) e só se move ante mudanças igualmente estruturais nas relações de propriedade desta riqueza; e uma mandíbula inferior que recolhe a cambiante desigualdade da renda, a qual diminui graças à largura das etapas de auge (o “lagarto capitalista” afrouxa suas presas quando tem muito pra comer) e aumenta pela escassez nas etapas de crise (o “lagarto” aperta suas presas); tudo no meio de um ciclo capitalista que se torna mais volátil e instável em sociedades extrativistas como as latino-americanas.

Em paralelo, o desenvolvimentismo progressista, firmado em profundas raízes coloniais e em bases extrativistas cada vez maiores, foi sustentado com crescentes e duros controles sobre a mobilização cidadã, com a criminalização de quem se opunha à ampliação dos extrativismos, assim como na flexibilização das normas ambientais e laborais para atrair investimentos. Isso enfraqueceu a base daquelas forças sociais com capacidade transformadora. Tudo isso foi abrindo o terreno para o surgimento da atual restauração conservadora, que na realidade começou durante os próprios governos progressistas – basta recordar como o correísmo se opôs à introdução da possibilidade legal do aborto por estupro no Equador.

Aceitemos, portanto: os progressismos, que surgiram de matrizes de esquerda, no final das contas simplesmente administraram governos que na essência procuravam modernizar o capitalismo.

Correio da Cidadania: No entanto, onde a direita retomou o poder central as tensões sociais e levantes populares aumentaram. O que explica esta dinâmica em sua opinião e qual expetativa podemos ter em relação a 2020?

Alberto Acosta: Com a chegada da crise econômica desatada pela queda dos preços das matérias primas no mercado mundial, as condições sociais se deterioraram e com isso foi junto a estabilidade política: enquanto o consumismo esteve bastante transbordante tal estabilidade aparecia como segura e os progressismos gozavam de boa saúde. A estabilidade política foi afetada por esta mudança no ciclo econômico.

Um caso digno de mencionar é o argentino: neste país um governo progressista foi substituído por um neoliberal, o de Macri, que ao fracassar redondamente permitiu o retorno do progressismo, contradizendo aqueles que acreditavam que a fase de tal espectro tinha terminado. Por outra perspectiva, é interessante anotar que no Equador, onde a troca de governo se deu por dentro do mesmo partido progressista, ao concluir uma fase de exacerbado autoritarismo – ao passar do governo de Correa ao de Lenin Moreno – muitas organizações sociais antes duramente reprimidas conseguiram recompor suas forças.

E, certamente, concluída a bonança progressista o neoliberalismo encontrou o terreno propício para seu ressurgimento com crescente força; ainda que também caberia destacar que em certos casos, como no mesmo Equador, a porta ficou entreaberta para este retorno, na medida em que o correísmo incentivou privatizações dos grandes portos ou a entrega de campos petroleiros a empresas transnacionais, abriu de par em par a porta para a megamineração, reintroduziu elementos de flexibilização trabalhista, firmou um TLC com a União Europeia... Enfim, o país viveu uma espécie de “neoliberalismo transgênico”: um Estado forte serviu para introduzir algumas das mais ansiadas metas neoliberais.

Em outras palavras, com os progressismos não se deu passagem às transformações estruturais que permitiram – ao menos começar a – construir bases econômicas, sociais e políticas mais sólidas para a superação da dependência extrativista e suas sequelas. Tampouco se afetaram as estruturas próprias de acumulação de capital, exacerbada pelos extrativismos descarados: mineiro, petroleiro, agroindustrial... Além disso, os progressismos, com suas políticas de disciplinamento social e de criminalização dos defensores da natureza, debilitaram as bases da organização social, afetando aqueles grupos que outrora enfrentaram o neoliberalismo.

Neste cenário, aproveitando-se do enfraquecimento do progressismo e diante da deterioração das forças sociais com capacidade transformadora, as direitas retornam diretamente ao poder e a partir dali empreendem políticas econômicas que na essência buscam aumentar ainda mais as condições de acumulação de capital, transferindo o custo do ajuste aos setores populares e à natureza, como acontece uma e outra vez em nossa história. Quer dizer, fecha-se novamente o “focinho do lagarto”.

Neste ponto, emergem muitas das lutas populares recentes, exacerbadas também pela inviável promessa de progressos e desenvolvimento própria da Modernidade. Assim, tais ações, com múltiplas expressões simbólicas, com conteúdo diverso e particular em cada país, caracterizaram o turbulento ano de 2019 e marcarão o de 2020, no qual a repressão em suas múltiplas formas estará em mãos da direita e a surpresa – como veremos mais adiante – a cargo das massas.

Este será um ano no qual, acima de tudo, deveremos ter a capacidade para diferenciar o que realmente propõem os progressismos do que apresentam as esquerdas. Para enfrentar o neoliberalismo e sobretudo as forças da ultradireita podem se construir alianças amplas, as quais, mesmo assim, não devem confundir a esquerda na conquista de seu objetivo pós-capitalista.

Correio da Cidadania: Como enxergou as revoltas de massa na Colômbia, Equador e Chile e o que elas têm de significado mais profundo?

Alberto Acosta: São processos animadores. São definitivamente alentadores. Apesar de certos traços comuns, são processos únicos e de alguma maneira irrepetíveis. Tais levantes são demonstrações da capacidade de sociedades em movimento, com potenciais enormes e inclusive imprevisíveis. De fato, esses levantes não emergem de planos pré-concebidos e menos ainda se inspiram na lógica repetitiva de funcionamento de muitas organizações sociais e políticas tradicionais. Esses levantes surpreendentes e inovadores mostram que pode se dar um novo impulso a muitas ações de luta que de tanta repetição cansativa superaram o âmbito da constância para se transformarem apenas em uma sonsa e até entediante obstinação.

Uma característica destes levantes é a surpresa, não tanto pelo assombro que provocaram, até para quem procura ler com atenção a evolução política e social, mas por terem balançado diversos governos... Este é o maior potencial: a surpresa como uma ferramenta indispensável para conseguir avançar, o que será duradouro sempre que a sociedade em movimento mantiver elevada a criatividade e, certamente, que exista clareza nos objetivos estratégicos a serem alcançados, o que, insistimos, não podem ser simples reedição atualizada de velhas propostas, e menos ainda a repetição cansada das mesmas táticas.

Nestes países, aos quais podemos somar o Haiti, estão presentes há muito tempo várias situações explosivas, mas que não pareciam ser tão potentes para que pudéssemos antecipar uma explosão da magnitude como a que se viveu nesses últimos momentos. Em cada caso há diversos detonantes, como foi a questão da eliminação de subsídios aos combustíveis no Equador ou o incremento da tarifa do metrô em Santiago, que acenderam a fagulha para desnudar realidades muito complexas.

No caso colombiano e chileno o caldo de cultura do protesto é a dura vivência neoliberal, sem dúvida alguma. Em outros casos, como o equatoriano, a receita não se nutre exclusivamente de ingredientes neoliberais, mas também uma perversa mescla de neoliberalismo com elementos próprios do progressismo, que no caso boliviano construiu o cenário para o golpe de Estado devido ao desrespeito do governo de Evo Morales a suas próprias construções institucionais.

Correio da Cidadania: Há algum elemento que possa explicar esses levantes na América Latina relacionado a outros processos pelo planeta?

Alberto Acosta: Esse é um ponto chave. O mundo, e não só a América Latina, está sendo sacudido por revoltas que superam os cenários previsíveis e não podem ser lidas com as ferramentas tradicionais. Urge, assim, abordar semelhante evolução sem cair nas análises simplistas ou generalizações que apaguem especificidades, nem esperar para dispor de todos os elementos que permitam compreender a plenitude de tais processos. É o momento de interpretar o que acontece para ao mesmo tempo tirar conclusões e lições que nos permitam atuar diante de desafios altamente complexos.

Tal abordagem deve ser feita a partir de um olhar latino-americano, tratando de identificar os mínimos denominadores comuns destes processos. Essa é a tarefa urgente para construir alternativas de esquerda e enfrentar as direitas.

São múltiplos focos de indignação e frustração ao redor de um mundo que vive uma crise multifacetada: ecológica, social, econômica, política... Uma crise que sob todas as luzes supera as conhecidas crises cíclicas próprias ao capitalismo e prefigura mudanças civilizatórias. As causas podem ser diversas em cada caso, mas algumas reações e muitos dos enfrentamentos com a ordem estabelecida mostram alguns traços similares.

A institucionalidade política está em crise. A democracia, por mais eleições que realize, aparece colocada em modo avião, isto é, desativada na prática. Os partidos políticos se entrincheiraram na defesa de seus interesses, tal como fazem os grandes meios de comunicação, que se recusam a entender o que significam sociedades em movimento e a origem profunda dos levantes em marcha. A corrupção corre solta.

As promessas de bem estar da Modernidade se afogam em uma realidade cada vez mais desumanizada e depredadora. As elites governantes – políticas e empresariais – respondem com crescente violência e aprofundam os conflitos com seu vandalismo neoliberal. E neste cenário a frustração, em especial na juventude, em suas múltiplas facetas alimenta as ações de resistência e protesto.

Correio da Cidadania: Por que essas revoltas são difusas e envolvem setores diversos da sociedade, relegando ao segundo plano partidos, sindicatos e movimentos sociais historicamente mais hegemônicos?

Alberto Acosta: Estes processos novidadeiros se registram em muitos pontos de toda a Nossa América. Definitivamente, a frustração popular criada e acumulada pela civilização da desigualdade e os estragos que esta vai deixando na periferia do mundo geraram as condições para uma explosão social que faz tremer o cenário político. “Semelhante mobilização popular – como escrevi em um artigo para introduzir a leitura da realidade equatoriana, com John Cajas-Guijarro – equivale a um terremoto que move e questiona as bases de nossas sociedades inequitativas e injustas, e até questiona as velhas formas e os velhos conceitos usados para entender os setores populares e seu sofrimento”.

Aqui – como já ficou assinalado – os reducionismos são inadmissíveis, pois obscurecem o panorama e impedem a construção de estratégias que potencializem esta onda de lutas de resistência e re-existência. A lista de problemas e frustrações acumuladas é grande e não se reduz a uma ou outra medida econômica ou política em particular, que como já dito podem ser os detonantes de uma explosão social, não sua última causa.

Assim, sem significar a única ou maior explicação, a deterioração econômica está na raiz de muitos destes processos. Ao desemprego e a miséria que nascem desta piora se somam políticas econômicas que aumentam a exploração do trabalho e da natureza. Mas o fundo do problema tem muito mais arestas. O peso das estruturas classistas, patriarcais, xenófobas, racistas etc. persiste e até aflora com redobrada força, em oposição aos múltiplos protestos libertários, sejam feministas, indígenas, ecologistas, camponeses, trabalhistas...

Por sua vez, as violências extrativistas próprias são um interminável processo de conquista e colonização, que explicam tanto os autoritarismos – progressistas ou neoliberais – como a corrupção, e dão passagem a crescentes resistências territoriais. Lutas que começam a inundar também os âmbitos urbanos: a recente revolta de Mendoza, Argentina, contra a megamineração é um dos exemplos mais recentes. Definitivamente, a pobreza, a iniquidade, a destruição de comunidades e da natureza vão de mão dada com as frustrações de amplos grupos – em especial jovens – mobilizados sem nada a perder, pois até o futuro lhes roubaram.

Compreender tal complexidade não é fácil. Apesar de saudar os mencionados levantes, em nenhum caso emergem dali mecanicamente saídas democráticas claras; por exemplo, o demandado processo constituinte chileno é ainda uma oportunidade recheada de ameaças conquanto esteja controlado pelas mesmas elites governantes. O mais evidente é que a violência estatal cresce aceleradamente e inclusive as sombras da militarização da política assomam como constante em vários rincões da Nossa América, de Brasil a Equador, de Venezuela a Bolívia, do Chile a Colômbia.

Dentro desta complexidade nota-se o esgotamento de uma modalidade de acumulação e de seus sistemas políticos – progressistas ou neoliberais – sustentados em profundas estruturas injustas, coloniais e forçadas a níveis explosivos pelas demandas insaciáveis do capitalismo global. Como bem observa Raul Zibechi: “as revoltas de outubro na América Latina têm causas comuns, mas se expressam de formas diferentes. Respondem aos problemas sociais e econômicos que geram o extrativismo ou a acumulação por despojo, a soma de monocultivos, mineração a céu aberto, megaobras de infraestrutura e especulação imobiliária urbana”.

Estes são problemas nascidos das contradições do capitalismo periférico, sob as quais os países latino-americanos são constantemente empurrados a perpetuar seu caráter de economias primário-exportadoras, sempre vulneráveis e dependentes, os quais têm o autoritarismo, tanto quanto a violência e a corrupção, como condições necessárias para sua cristalização. Paralelamente, persiste a perversa lógica de que os lucros se privatizam e os prejuízos se socializam, sempre com a cumplicidade entre Estado e grandes grupos de poder econômico e político. Enquanto isso, se dilui no imaginário de amplos segmentos da população a possibilidade de cristalizar padrões consumistas próprios de um “modo imperial de vida”, só possível de alcançar com a superexploração da mão de obra e da natureza, o que na verdade é algo irrepetível de modo geral.

Diante de tamanha injustiça e indolência do poder, quando as estruturas políticas se tornaram cultoras do poder pelo poder, o que sobra ao povo além da resistência e do protesto?

Correio da Cidadania: Concorda com a noção de perda de protagonismo mundial da América Latina diante do atual reordenamento econômico pelo qual passa o planeta? A que estamos relegados?

Alberto Acosta: Aceitemos: a América Latina nunca teve uma real liderança mundial no que se refere a uma reorganização da economia mundial. Esta região foi condenada desde as mais remotas horas do capitalismo – há mais de 500 anos – como abastecedora submissa de matérias primas. A realidade não mudou nada. Pelo contrário, com regimes neoliberais e progressistas, como já dito, a lógica dos extrativismos e do desenvolvimentismo dominou o imaginário político da região em décadas recentes. As conquistas e a colonização são constantes em Nossa América.

Neste ponto é lamentável ver a incapacidade demonstrada pelos governos progressistas para dar passagem a uma sólida evolução integracionista. Isso teria permitido posicionar a região como um bloco poderoso no contexto mundial. Os sonoros discursos não superaram as ações de submissão neoliberal. A IIRSA (Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana) neoliberal se transformou em COSIPLAN (Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento), na essência também neoliberal ao assegurar a vinculação de diversos recursos da região com as demandas dos capitais transnacionais e dos mercados metropolitanos.

O Brasil, por exemplo, durante o longo período de governo do PT, longe de ser um motor de um processo de integração regional aprofundou suas práticas subimperialistas no continente, enquanto dentro de casa ampliou os extrativismos, gerando um processo de clara desindustrialização. Tudo isso aprofundou as condições tradicionais da dependência do mercado mundial.

Correio da Cidadania: Quais seriam as alternativas ao quadro político e econômico predominante? Quais as janelas que parecem se oferecer para a abertura de um novo período histórico que vá na direção contrária das imposições deste modelo de capitalismo e por que elas são necessárias?

Alberto Acosta: Enquanto os diferentes grupos de poder, aparentemente, se preparam para impor o capitalismo total recorrendo a diversas formas de autoritarismo, inclusive de corte fascista, as lutas populares necessitam se organizar e ver a si mesmas como lutas de dimensões múltiplas. Deve-se assumir simultaneamente uma dimensão classista e ambiental (trabalho e natureza contra o capital), uma dimensão decolonial (como a histórica reivindicação indígena), uma dimensão feminista e antipatriarcal, uma dimensão oposta à xenofobia e ao racismo... Definitivamente, uma luta múltipla que deve buscar um amanhã mais justo para todos e todas. Uma luta que, a partir da rebelião, seja semente de um novo futuro.

Dentro deste novo futuro um elemento chave é a urgência de construir e planificar uma nova economia, a serviço da vida humana – indivíduos e comunidades – e sempre em estreita harmonia com a natureza: a justiça social deve vir sempre acompanhada de justiça ecológica, e vice-versa. Construir essa nova economia é crucial, pois a economia dominante na civilização atual asfixia o mundo humano e natural, enquanto acumula capital e poder em benefício de reduzidos segmentos da população. E enquanto isso aos despossuídos pelo sistema não há outro remédio para evitar morrer no esquecimento senão lutar para desmoronar uma economia que sempre busca sair de sua crise sacrificando vidas – e até a natureza – a fim de sustentar o poder de umas quantas elites.

Definitivamente, o que está claro é que a premissa descolonizadora e despatriarcalizadora, elementos fundamentais na superação da exploração do ser humano e da natureza por parte do capital, demanda refundar os Estado-nações coloniais, oligárquicos, capitalistas para que estas transformações não fiquem simplesmente nos discursos. Não se trata de simplesmente ganhar eleições para acessar o poder, mas construir um poder desde baixo, desde a esquerda e sempre com a Pachamama (mãe terra) para impulsionar um processo de radicalização permanente da democracia.

Em consequência, urge construir sobre a caminhada uma nova história, a qual necessita de uma nova democracia, pensada e sentida desde os aportes culturais das diversas comunidades, em particular desde os povos marginalizados, como são os originários; isto é, uma democracia inclusiva, harmônica e respeitosa da diversidade.

Tudo isso como parte de propostas de transformações profundas, civilizatórias, em que a ênfase deve estar em assegurar simultaneamente a pluralidade e radicalidade. Uma tarefa que não será possível da noite para o dia, mas através de sucessivas aproximações que enfrentem todas aquelas máquinas de morte que ameaçam a sobrevivência humana e a vida no planeta. Requeremos ações que teçam as lutas de resistência com as ações de re-existência em níveis local, nacional, regional e internacional... Para enfrentar as “internacionais da morte” serão necessárias “internacionais da vida”, de uma vida digna para todos os seres humanos e não humanas.

Este esforço deve liberar as forças sociais hoje presas em diversas institucionalidades do poder estatal, potencializando suas capacidades de autossuficiência, autogestão e autogoverno. Tudo isso demanda não só inteligência na crítica, não só profundidade nas alternativas, mas sobretudo a ação criativa das forças políticas que viabilizem esses processos emancipatórios.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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