Correio da Cidadania

Guerras extrativistas na Bolívia

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O assassinato do vice-ministro e a morte de quatro mineiros voltam a confirmar que os extrativismos transitam em níveis maiores de violência. Não é a primeira vez que isso acontece, mas nesta ocasião golpeia o governo da Bolívia e um dos seus mais íntimos aliados políticos. Mais além dos clássicos argumentos partidários, este caso deixa claro que as ideologias ficaram relegadas por uma guerra crua pelos excedentes econômicos. Uma vez mais, as comunidades e a natureza sofrem.

 

O conflito entre as cooperativas mineradoras e o governo de Evo Morales não pode ser analisado apelando aos marcos clássicos. De um lado, não estamos diante de uma grande corporação transnacional, mas de um conglomerado de agentes econômicos que praticam a mineração, e se apresentam a si próprios como cooperativas (e de esquerda). Do outro lado, o governo de Evo Morales e o Movimento ao Socialismo (MAS) construíram uma estreita relação com todo esse setor, transformando-o em um de seus aliados mais importantes.

 

O atual ciclo de conflitos começou no início de agosto com a aprovação no parlamento de uma reforma da lei de cooperativas, proposta pelo governo Morales, para permitir e proteger a sindicalização dos trabalhadores. A medida foi duramente criticada pela Federação Nacional de Cooperativas Mineiras (FENCOMIN) e em 10 de agosto começaram mobilizações e os protestos. Estima-se que existem 130 mil cooperativas mineiras, o que os torna atores de peso. Rapidamente, geraram bloqueios em estradas nacionais e declarações cada vez mais inflamadas.

 

Do lado do governo, os discursos também ficaram mais duros e mais polícia foi mobilizada. Estalaram brigas que deixavam dezenas de manifestantes detidos e dezenas de policiais eram mantidos reféns pelos mineiros, com feridos em ambos os lados. Vários mineiros também foram encarcerados e respondem processos judiciais, o que faz endurecer ainda mais os cooperativistas. Em 24 de agosto morreram dois mineiros nesses confrontos, e no dia seguinte o vice-ministro do interior, Rodolfo Illanes, que tentava iniciar nova negociação. Ao menos um dirigente mineiro afirmou, com toda clareza, que assassinariam este funcionário se outro manifestante mineiro morresse.

 

Sob essa dinâmica, já sem controle, a notícia do falecimento de um novo manifestante terminou em uma multidão que linchou e torturou o vice ministro até sua morte e abandonou o corpo em uma estrada – que foi retirado em 26 de agosto. É uma triste e dolorosa situação que até o dia 31 de agosto já contava um total de 5 mortos.

 

Como muitas vezes acontece na Bolívia, quase nada é o que parece e é necessário dissecar com precaução os atores e suas disputas. Por um lado, as chamadas “cooperativas” na realidade são mais similares a empresas, e em boa parte delas existem uns poucos sócios cooperativistas e um monte de trabalhadores assalariados, que trabalham sob duríssimas condições de segurança e ambiente, salários baixos e impedidos de se organizarem. Em algumas cooperativas são inclusive exploradas mulheres e crianças nestas condições.

 

Por outro lado, a proposta de modificação do governo Morales estava focada nos assalariados das cooperativas e serviços, e era discutível se afetaria os mineiros. Com a desculpa de que essa medida tornaria ingovernáveis as cooperativas é que se lançaram as primeiras mobilizações. É um tipo de argumento, afinal, conservador, mas dito pelos organizadores, sem dúvida populares, e que se apresentam a si próprios como parte da revolução do MAS (Movimento ao Socialismo).

 

Recordemos que tais cooperativas têm sido um dos sócios mais poderosos deste governo, tanto por seu poder de mobilização como pelo grande número de votos que significam. É um conglomerado que tem muita caras, já que por momentos opera como um sindicato, às vezes como uma câmara empresarial e em outros casos como movimento político que tem seus próprios legisladores e integrantes em postos ministeriais.

 

Para muitos analistas e meios de comunicação parecerá que é a primeira vez que isso ocorre na Bolívia, mas há uma longa lista de antecedentes. Em um dos mais lembrados, em 2006, morreram 16 pessoas por duríssimos enfrentamentos entre mineiros cooperativistas e mineiros do sindicato da empresa estatal, para controlar umas parcelas na localidade de Huanuni, no altiplano andino. Outra guerra extrativista que também fugiu do controle governamental.

 

Assim ninguém pode se surpreender com o evidente aumento da violência ao redor da mineração. Já não é apenas a imposição de umas empresas contra a comunidade local, mas em vários lugares e em distintos países estouram conflitos entre distintos grupos de mineração (cooperativistas versus trabalhadores; empresas estatais ou privadas; legais ou ilegais), mineiros de qualquer tipo versus camponeses que se dedicam à agricultura ou povos indígenas. A violência no extrativismo já não expressa ocasionais acidentes, mas é um componente essencial e próprio desta atividade.

 

Dando outro passo na particularidade boliviana, os reclames das cooperativas mineiras vão muito mais além do que resistir à sindicalização. Suas exigências são muito mais amplas e incluem poder efetuar contratos diretamente com empresas transnacionais, esquivar o controle parlamentar nesse tipo de comercialização, aumentar as áreas de exploração mineira, incluindo o acesso a terras florestais e áreas protegidas, receber ainda mais ajuda financeira e subordinar os controles ambientais.

 

Pelo que podemos constatar, são pautas que seriam o sonho para qualquer grande corporação transnacional, mas aqui são exigidas violentamente por grupos populares que se consideram parte do progressismo e eram sócios íntimos do governo. E justamente outra particularidade da situação é que as cooperativas mineiras têm esse enorme poder e cara-de-pau de fazer tal tipo de reivindicação graças a sucessivas concessões e benefícios dados pelo governo de Evo Morales. A mais recente foi a nova lei de mineração, n. 235 e aprovada em 2014, que consolida seu status privilegiado, outorga grandes benefícios econômicos e até mesmo declara que seria ilegal qualquer atividade que impedisse a mineração (entre elas, a greve, claro).

 

Este caso boliviano ainda mostra a necessidade de olhares conceitualmente rigorosos sobre os extrativismos. É que não são poucas as definições de extrativismos mineiros que, ainda na crítica, o concebem somente como expressão própria das grandes corporações do norte. Esses conceitos são quase sempre compartilháveis, mas ao caírem em narrações metafóricas nem sempre servem para entender outros extrativismos, tais como o cooperativismo mineiro boliviano ou a ilegalidade/informalidade dos mineiros de ouro da Amazônia.

 

Por isso uma definição mais precisa sublinha que os extrativismos são um tipo de apropriação intensiva e de grandes volumes dos recursos naturais, que ocorrem sob distintos regimes de propriedade: privada, estatal, mista, cooperativa etc.. Desta forma, o rigor em entender os extrativismos não é uma mania acadêmica, mas algo indispensável para abordar distintas situações de conflito.

 

Ao longo dos últimos anos, enquanto cooperativistas e governo eram aliados dentro do próprio governo, não houve muitas análises críticas independentes, já que se protegiam mutuamente. Os poucos que o fizeram, como ocorreu com analistas, militantes e poucas ONGs na Bolívia, alertaram sobre as exageradas concessões que o governo outorgava às cooperativas mineiras e difundiram denúncias que partiam das comunidades locais.

 

Os estudos dessas ONGs, especialmente os da CEDIB (Centro de Documentação e Informação da Bolívia) foram duramente questionados a partir do poder e seus seguidores entre os meios de comunicações e outras ONGs, apresentando-o como um obstáculo para explorar os recursos naturais. Agora é evidente que eles estavam certos, ao passo que fica em evidência a fragilidade dos analistas que se prestam a serem apenas ecos governamentais.

 

As acusações entre os distintos atores no conflito se cruzam, ainda que em um plano superficial. Os cooperativistas e sindicatos exigem responsabilidades políticas do governo por haver permitido a escalada de violência, e em especial identificar quem foram os assassinos de manifestantes. Por sua vez, o governo avança sobre as cooperativas com o início dos processos judiciais contra aqueles que mataram o vice-ministro, mas surpreendentemente também busca culpar as bases, já que outra vez insiste em que todo o assunto é parte de um complô da direita partidária.

 

O que mais surpreende desse tipo de discussão é que não analisa a essência do conflito: uma violenta disputa pelos excedentes da extração. Sem dúvida estamos diante de uma disputa político-partidária convencional, e assim rompeu-se a aliança do governo de Morales com um dos seus principais aliados. Porém, essa não é a causa de todo o drama e, sim, consequência de uma contradição muito mais profunda.

 

De um lado o governo e de outro os mineiros, lutando para controlar os excedentes que provêm da exploração de recursos naturais, para assegurarem a maior fatia possível de sua rentabilidade econômica. Nem eles e nem os analistas ou meios convencionais de comunicação estão debatendo, por exemplo, se é apropriado seguir com este tipo de mineração, nem sobre seu custo social e ambiental ou seu real benefício econômico, nem ainda sobre sua inerente violência.

 

É uma situação muito triste porque somos testemunhas de grupos sociais que caíram em visões tão, mas tão mercantilizadas da natureza e das comunidades, que a destruição ambiental, o sequestro ou o assassinato estão justificados com o papo de recuperarem-se os investimentos. São estes tipos de condições que têm raízes mais profundas, as que alimentam uma e outra vez as guerras extrativistas. Nelas, as vítimas, sempre repetidas, seguem sendo as comunidades locais e a natureza.

 

 

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Eduardo Gudynas é analista do CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social) em Montevidéu.

Publicado em espanhol no Cenda.org.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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