Correio da Cidadania

Desafio da esquerda é superar a tentação populista

0
0
0
s2sdefault

Resultado de imagem para lulismo e bolsonarismo
O sistema capitalista tem conseguido se preservar e se manter no controle político do Brasil – um país periférico, dependente e fortemente marcado pela desigualdade econômica e social – graças às forças auxiliares que constituem as várias vertentes do populismo, tanto pela esquerda quanto pela direita. A grande virtude do populismo tem sido a de cativar ampla maioria na sociedade com promessas fantasiosas e impedir o avanço real de projetos políticos sérios e consequentes para a transformação social e econômica. Tem muito tempo que o país é refém do populismo, que alimenta reiteradamente a expectativa de mudanças, mas não consegue e nem pretende superar antigos e graves problemas.

Basta verificar o que aconteceu no Brasil desde o final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, quando o movimento social autêntico e combativo proporcionou avanços organizativos no campo da esquerda, na construção de ferramentas partidárias, sindicais e populares capazes de ameaçar o domínio do capitalismo. Tudo estava a indicar que a grande aglutinação de forças populares no campo da esquerda daria ao país o início de nova era com a vigência das liberdades democráticas incorporadas à Constituição de 1988 e com as eleições diretas para a Presidência da República em 1989, que ocorreu com ampla diversidade de candidatos e de siglas partidárias.

No entanto, da vitória de Collor de Mello para cá, com a forte aglutinação do bloco liberal-conservador nos anos 1990, o que tivemos foi um desastroso processo de corrosão das organizações no campo da esquerda (partidos, sindicatos e movimentos sociais), e a sua domesticação e acomodação ao sistema dominante. Todo o acúmulo de forças conquistado na luta contra a Ditadura Militar (1964-1985), pelas liberdades democráticas e na defesa de verdadeira e real transformação, aos poucos, perdeu a energia e a ousadia revolucionárias em troca dos discursos demagógicos de lideranças populistas, tanto nos momentos eleitorais quanto nos governos de rendição programática e de conciliação de classes.

O populismo frequentemente encanta os trabalhadores e os segmentos populares com discursos de fácil comunicação, com lideranças carismáticas e messiânicas, com promessas apelativas e milagrosas, como se toda injustiça e exploração fossem desaparecer num passe de mágica. O populismo não tem projeto de Nação, não organiza, não conscientiza e nem mobiliza o povo para a luta, geralmente depende de algum “salvador da pátria” e cria o tempo todo supostos inimigos (renovados a cada eleição) para desviar a atenção sobre as questões estruturais da sociedade. O populismo não atua contra as mazelas do capitalismo e não ataca os privilégios das classes dominantes. Apenas cuida da gestão do sistema.

Propostas diferentes

A esquerda, diferentemente das várias vertentes do populismo, se propõe a atuar sempre como uma força antagônica ao sistema capitalista, tem projeto de construção de uma democracia socialista com oportunidades e direitos iguais para todos, justiça social e eliminação da concentração econômica. O populismo, quando muito, se utiliza de “políticas compensatórias” para dar aos pobres algum benefício da riqueza produzida, mas sem acabar com os fatores que geram a desigualdade. A esquerda, ao contrário, denuncia sempre a fragilidade do assistencialismo e da falsa inclusão subordinada e dependente gerada por políticas paliativas. A inclusão pelo consumo não cria sociedade autêntica e solidária.

Se não recorresse ao populismo, as classes dominantes (setor financeiro, empresariado, produtores rurais, rentistas, grandes proprietários e altos funcionários do Estado) dificilmente defenderiam a realização de eleições livres e democráticas, já que a maioria da população explorada e oprimida tenderia a apoiar partidos e candidatos comprometidos com transformações reais e profundas. O populismo, de esquerda e de direita, costuma conquistar o eleitorado porque cria a poderosa ilusão de que todas as mudanças sonhadas pelo povo serão realizadas tão somente com o resultado do pleito, sem a necessidade de mobilização e luta posteriormente, sem confrontos com os donos do poder, sem sacrifícios no processo de transformação. O populismo acena com mudanças, mas mantém o mesmo sistema de poder.

Nos anos 1980 o jogo político tentou escapar do bipartidarismo (Arena e MDB) criado pela Ditadura Militar. Na “abertura” gradual surgiram opções de direita, centro, centro-esquerda e de esquerda na reforma partidária restrita para as eleições de 1982, com PDS, PMDB, PTB, PDT e PT. Depois o leque foi aberto com PFL, PP, PSDB, PSB, PCB, PCdoB e dezenas de legendas de aluguel. O país surfou no ensaio de siglas ligadas ao conservadorismo, liberalismo, trabalhismo, socialdemocracia e ao socialismo.

Mas o que prevaleceu no jogo político-eleitoral ao longo da Nova República foram polarizações colocadas pelo lulismo: primeiro contra o malufismo, depois contra o tucanato (FHC, Serra, Aécio, Alckmin), até a polarização atual contra o bolsonarismo, que é mais uma vertente do populismo marcada pelo culto à personalidade.

Tratamentos desiguais

Se não controlasse os governos populistas, dificilmente as classes dominantes e as velhas oligarquias conseguiriam conviver com o que chamam de Estado Democrático de Direito, que é sempre um conjunto de regras supostamente em vigor para toda a sociedade, com direitos e obrigações presumidamente iguais para todos, mas que na verdade contempla punições só aplicadas para as camadas populares mais fragilizadas e desprotegidas diante do rigor das leis. As mesmas leis raramente são aplicadas para punir as elites, os ricos, os poderosos e os privilegiados. O que garante a continuidade dessa situação desigual são os governos das várias vertentes de populismo, que se revezam na máquina pública e no gerenciamento do Estado.

Basta verificar que a grande maioria das punições administrativas, civis e criminais (multas, restrições, prisões etc.) vale para os desprovidos de cidadania, os cidadãos comuns, principalmente para aqueles que não contam com redes de proteção na máquina pública e sistemas privados de saúde, educação, seguros, previdência e suporte jurídico (advogados).

Em contraposição, as punições raramente atingem os privilegiados, que dispõem das melhores redes de proteção nos esquemas privados e altos escalões da esfera pública e estatal, e especialmente advogados bem remunerados. Os trabalhadores e os mais pobres pagam regiamente seus impostos, no contracheque e nos preços das mercadorias, enquanto os empresários, banqueiros e proprietários rurais são premiados com isenções, desonerações e anistias.

Desastre nacional

A ascensão do populismo bolsonarista, em grande parte devido aos equívocos políticos do populismo lulista, inaugurou nova atuação do baixo clero e dos segmentos da população desprezados anteriormente pelos núcleos operacionais da política tradicional. A direita, ao contrário da esquerda, soube tirar proveito da rebeldia generalizada de junho de 2013, deu sequência à mobilização dos setores médios no processo de impeachment de Dilma Rousseff, ganhou contornos de força reacionária na greve dos caminhoneiros (saudosista da ditadura) e desaguou nas urnas de 2018 com enorme radicalidade, nas regiões mais ricas (sul-sudeste) e no berço originário do lulismo, na grande São Paulo.

A compreensão do bolsonarismo passa obrigatoriamente pela análise crítica de erros cometidos nos seguidos governos do lulismo, de 2003 a 2016. É preciso analisar porque chegamos à barbárie atual e porque não devemos repetir o mesmo caminho na atual conjuntura. O que temos hoje é fruto das opções equivocadas que contribuíram para sedimentar as bases do conservadorismo de direita em vários aspectos, entre as quais vale destacar:

1 – A aliança firmada desde 2003 com o capital monopolista, o rentismo, o agronegócio e com as oligarquias regionais proporcionou o enorme desvio de recursos públicos do BNDES para obras faraônicas (Copa do Mundo) e grandes grupos empresariais, o que gerou perda da capacidade de investimento público em programas sociais e nos segmentos médios da sociedade.

2 – A ilusão da prosperidade ampla criada por medidas precárias de aumento da renda e de inclusão via consumo alimentou a esperança de muita gente, mas a ausência de programas sólidos e sustentáveis gerou aumento generalizado de endividamento, a explosão da inadimplência e enorme frustração com o agravamento da crise econômica e o aumento do desemprego.

3 – O enfraquecimento deliberado das organizações dos trabalhadores, dos movimentos populares e dos instrumentos de luta da maioria da população permitiu ao lulismo oferecer para as classes dominantes, em especial aos empresários urbanos e rurais, a “pacificação” das lutas sociais e a “tranquilidade” dos mercados, até o controle ser rompido com a rebelião social de 2013.

4 – O fortalecimento de setores conservadores nas articulações com políticos e partidos fisiológicos de direita deu ao governo ampla base no Congresso Nacional e ao mesmo tempo a qualificação dos quadros da direita em cargos públicos, com prejuízo para o campo progressista e a esquerda. As campanhas de 2014 e 2018 elegeram os deputados e senadores mais reacionários da história.

A esquerda se tornou refém do populismo porque recuou no projeto de construção do socialismo e porque viu no populismo um atalho para chegar ao controle do Estado, principalmente para adotar medidas populares e do interesse dos mais pobres, mas não se deu conta de que o populismo não altera a estrutura econômica e social do país (as classes exploradas continuam no mesmo estrato social de quando alcançam alguma melhora no poder aquisitivo e conseguem consumir mais). Sempre o projeto populista proporciona mais ganhos reais às classes dominantes do que aos pobres e oprimidos.

A nossa concepção da esquerda não pode abrigar a hipocrisia, não podemos ignorar que as várias vertentes do populismo estão o tempo todo a iludir o povo brasileiro. Quem realmente acredita na construção de uma sociedade livre do capitalismo sabe muito bem que não basta combater o esquema de Bolsonaro, a horda autoritária que ele representa e quer impor ao país; é preciso denunciar também o populismo lulista, que se associou aos esquemas mais corruptos do Brasil: as construtoras, os frigoríficos, as montadoras de veículos, o agronegócio e o capital financeiro e industrial desde os grandes grupos de São Paulo até velhas oligarquias regionais do nordeste.

Num país verdadeiramente democrático, quem tirou dos cofres públicos o que sempre falta aos pobres tem o dever de assumir a responsabilidade pelos erros políticos e pelos desvios éticos. Ninguém tem o direito de recorrer aos mais variados artifícios para ganhar a impunidade. As leis precisam ser cumpridas e ter validade para todos os cidadãos, independentemente de sexo, escolaridade, recursos financeiros, relações de parentesco e de poder político.

Entre os inúmeros abusos de autoridade verificados no Brasil, roubar e deixar roubar sempre estiveram entre os mais impunes. Quem protagoniza a corrupção, como outras violências contra o povo, não pode covardemente se esconder no papel de vítima. A esquerda precisa combater duramente o desgoverno Bolsonaro e criar uma alternativa que não tenha a ver com a ilusão do populismo.

Precisamos renovar sempre a perspectiva de uma sociedade justa, igualitária, democrática, livre, soberana – e socialista.


Hamilton Octavio de Souza é jornalista.

0
0
0
s2sdefault