Correio da Cidadania

"A vida humana não é uma prioridade no Brasil”

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Nesta entrevista à Pública, o agora coronel da reserva Ibis Pereira, 54 anos, é assertivo sobre a atual crise de segurança pública do Rio: “É preciso reduzir homicídios para o clima de civilidade voltar e a barbárie acabar”. Sua experiência de 33 anos na Polícia Militar lhe deu outras convicções. Entre elas, a de que a melhor maneira de proteger o policial é fazendo a polícia matar menos. “A vida dos seres humanos não pode ser tratada como um efeito colateral”, diz o militar, formado em direito e filosofia e com mestrado em história.

“O nosso problema é justamente que aquilo que poderia nos salvar é o que a gente repudia. A gente repudia exatamente o remédio. Por isso a gente não sai da UTI, porque estamos recusando o remédio, que é mais direitos humanos”, afirma Ibis, que avalia que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) vêm apresentando “um colapso crescente”, sobretudo no último ano. Segundo ele, a crise financeira não poder ser uma desculpa para não fazer o que é possível fazer”.

A vitimização da PM, a desumanização da sociedade e a responsabilização institucional foram outros aspectos abordados na conversa a seguir.

Por que há um aumento no número de conflitos e vítimas por bala perdida no Rio?

Nos últimos 40 anos, o Rio de Janeiro tem vivido conflitos muito dolorosos em função da dinâmica como se organizou o crime para a venda de drogas. Essa organização se deu a partir da disputa territorial de guerras de facções quando o Rio e o Brasil entraram na lógica do tráfico internacional de drogas, na virada dos anos 1970 para os 1980, depois do boom da cocaína. Essa lógica de mercado ganhou no Rio uma “coloração” diferente de outros estados em função da geografia da cidade. A periferia e os bairros mais nobres, com maior IDH, estão próximos. Por isso, desde que a gente abraçou a guerra às drogas como grande estratégia para o enfrentamento desta questão, há 40 anos, é que o Rio vive de fato um conflito muito doloroso, que tem vitimado milhares de pessoas.

Já em 2012 o Programa de Polícia Pacificadora (UPPs) começou a apresentar os primeiros sinais de debilidade e nada foi feito para solucionar a questão. Naquele ano a primeira policial morre em serviço, numa UPP, em Nova Brasília, no Complexo do Alemão, região ocupada em 2010 naquelas cenas de espetáculo belicista que o Brasil deu ao mundo.

Desde então, o programa vem apresentando um colapso crescente e há pouco mais de um ano esse cenário se agudizou. Realmente há um colapso na política pública de segurança do Rio, se é que nós temos isso. Se é que nós podemos chamar o Programa de Pacificação de uma política pública de segurança. Penso que é um programa, até muito bem intencionado, mas chamá-lo de política pública de segurança é demais.

O que culminou para essa crise na segurança pública do Rio?

Acho que a questão da segurança pública, no Brasil, pode ser resumida em três grandes desafios. O primeiro é o de reduzir indicadores criminais, a partir de políticas públicas, com ações articuladas em nível federal, estadual e municipal, elaborando ações ou atribuições para cada um desses atores e concentrar tudo num grande pacote, com indicadores que possam verificar a efetividade dessas ações. Isso é política pública, e não existe no Brasil.

Aqui, a cada nove minutos um brasileiro é vítima de morte violenta intencional e não existe nenhum programa preocupado em reduzir esses indicadores.

O segundo problema é o nosso modelo de polícia e de justiça criminal. Primeiro, nós não temos um sistema de justiça criminal; afinal, as agências não trabalham em harmonia, não acertam as suas ações. Temos polícias nos estados, que constituem um modelo, que é uma invenção brasileira que, definitivamente, não funciona. Temos uma polícia militar, que está presente nas ruas, que patrulha e não investiga absolutamente nada, e isso é determinante para entender o fracasso das UPPs. Além disso, essa polícia que patrulha e não investiga se espelha no exército, um espelhamento absolutamente nocivo para atividade policial.

Mesmo assim, em 2008 é construído um programa que coloca nas favelas essa polícia, num espaço onde a droga é vendida – e vai continuar a ser vendida, porque é uma demanda. Você coloca a PM lá e não muda a política de drogas, que continua sendo a guerra, porque é a única política que o Brasil tem. Apesar de algumas ações louváveis, a grande estratégia é a guerra e o enfrentamento bélico. Isso é um cenário desenhado para a tragédia. Não pode dar certo.

Ao mesmo tempo, não se pode dizer que este programa não contribui para redução de homicídios na cidade. Mas, em vez de estruturá-lo melhor, de fazer o programa crescer dentro de uma razoabilidade que pudesse acompanhar um repensar da política de drogas, o programa cresceu demasiadamente. A primeira UPP foi inaugurada em 2008; em 2014, nós já tínhamos 38 UPPs, e querendo inaugurar mais uma na Maré. Ou seja, com todas essas deficiências, o programa aumentou.

A gente tem todo o cenário de fundo, da realidade brasileira, que precisa amadurecer para a construção de políticas públicas, que precisa repensar a nossa política de drogas e melhorar o controle do armamento e da munição que circula no país. Portanto, você junta isso tudo e se entende por que não deu certo.

O que a gente não pode é continuar admitindo, da maneira como fazemos, que as vidas humanas no Brasil sejam desperdiçadas da maneira que são e isso seja tratado como um efeito colateral, como se costuma dizer, da maneira mais despudorada e equivocada do mundo. A vida dos seres humanos não pode ser tratada como um efeito colateral, isso não cabe num estado democrático de direito.

Até que ponto a crise financeira do Rio contribui para a crise na segurança pública?

A crise é a desculpa para não fazer o que é possível fazer. Há uma série de coisas que você não consegue fazer com crise econômica e financeira, e há muita coisa que pode ser feita, que não depende de crise. A modernização dos marcos institucionais da polícia, dos marcos legais, que balizam as ações da polícia, não depende da crise econômica e financeira. Depende de alteração nas leis, nos decretos, nas normas que orientam o trabalho da polícia, e isso não tem nada a ver com crise financeira. Isso depende de vontade política, de decisão, de visão.

O estatuto que organiza a Polícia Militar do Rio é de 1981, anterior à Constituição. O regulamento disciplinar que rege a PM é de 1983, também anterior à Constituição. As instituições policiais precisam se organizar. No Brasil, o decreto que organiza a polícia é de 1969. Para mexer nisso, não tem nada a ver com a crise econômica. Depende de ideia, depende de projeto, depende de encaminhamento e discussão na Assembleia Legislativa. E a modernização das instituições policiais é fundamental para que elas ganhem agilidade, eficiência e eficácia no enfrentamento do crime. Isso não tem relação com crise financeira, mas tem relação com uma crise política!

Para se enfrentar o crime, é preciso três coisas: decisão política, engajamento da sociedade e de projeto. Se não tem isso, os indicadores decolam, como está acontecendo no Brasil e, particularmente, no Rio. Se tem crise política, não tem decisão política; se não tem decisão política, a gente fica igual a um navio à deriva com um rombo no casco.

Uma das consequências dos conflitos são as vítimas por bala perdida. Como a inteligência da polícia investiga esses casos?

De acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), de janeiro até maio, 480 pessoas foram mortas decorrentes de intervenção da polícia. Esse é um problema gravíssimo. A grande questão hoje é reduzir taxas de homicídio. Num país em que essas taxas são bem elevadas, quando se mata muito, se estupra muito, se furta muito, se rouba muito, o homicídio puxa os outros indicadores, e esse clima de barbárie começa a ganhar as ruas, a cabeça, o espírito das pessoas. E elas começam a se tornar belicosas, violentas. Portanto, é preciso reduzir homicídios para o clima de civilidade voltar e a barbárie acabar.

O primeiro movimento é reduzir a letalidade da polícia, porque a polícia está na mão do Estado. E a investigação dos crimes que envolvem as mortes que decorrem de intervenção policial é fundamental para reduzir a letalidade e proteger o próprio policial. Uma polícia que vitimiza muito durante sua ação é uma polícia muito vitimada também. São faces da mesma moeda: uma polícia que mata muito morre muito. É a vendeta. É a vingança.

A melhor maneira de proteger o policial é fazendo com que a polícia mate menos. Além da doença mental, do sofrimento psíquico, pelos quais os agentes policiais passam, por estarem mergulhados neste ambiente de morte, de guerra, de vitimização.

Para se ter uma ideia, nos EUA a taxa de elucidação de homicídios gira em torno de 65%; na Inglaterra, é de 90%; na França, é mais de 80%. De acordo com o Fórum de Segurança Pública, a média brasileira é de 8%. Ou seja, num país onde 60 mil brasileiros são mortos por ano, apenas 8% dos casos são elucidados.

O que estou chamando de elucidação? Apresentar para Justiça o suspeito do crime, com indícios suficientes de autoria, para que a Justiça possa fazer o julgamento. Um plano de redução de homicídios tem que passar pela melhoria das taxas de elucidação de inquérito. Isso significa investimento na polícia científica. O local do crime fala, mas, para que o local do crime fale, precisa de uma polícia científica com recursos tecnológicos e humanos. No Brasil, a prova testemunhal ainda é rainha das provas, o que é um problema.

Fala-se muito em inteligência policial, mas na verdade, isso fica muito no campo retórico. Basta ver o que fica de concreto do produto dessas polícias: baixas taxas de elucidação e uma grande taxa de vitimização produzidas pelas polícias.

A gente está engatinhando tanto que ainda temos dificuldade com dados. Quando se pergunta ao ISP, por exemplo, sobre a quantidade de inquéritos concluídos, o resultado que ele dá é a quantidade de inquéritos relatados. Mas a questão é: dos inquéritos relatados, quantos efetivamente são aproveitados pelo Ministério Público? Porque quem denuncia não é o delegado de polícia. O trabalho do delegado de polícia vai para um promotor, que é o dono da ação penal, o fiscal da lei. É ele quem promove a ação penal e vai levar este indiciado à presença do juiz, para que ele seja processado.

As pessoas que estão ligadas direta ou indiretamente aos conflitos não enxergam um caminho para a pacificação. E você?

Não vejo outro caminho que não seja a redução da taxa de homicídio. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 46 estão na América Latina e 32 no Brasil. Isso tem a ver com o nosso passado colonial escravocrata. Quem está morrendo é negro, pobre e morador de favela. É uma violência ancestral que o nosso presente replica.

Estamos há tanto tempo fazendo guerra que, quando um garoto morre porque estava numa boca de fumo, faz parte da lógica; quando um policial morre, também faz parte da lógica. A gente está fazendo guerra há 40 anos e se acostumou com isso. Precisamos entender que o estado democrático de direito não faz guerra contra a sua população.

A vitimização do jovem negro, pobre e morador de favela, em última análise, é uma questão do Estado. Ou ele está omisso ou está diretamente implicado na questão pelos seus agentes. O Estado não pode ser apenas uma máquina de arrecadar que tem uma força militar. Pensando o Estado como um agente pedagógico da civilização, ele não pode concorrer com a barbárie.

Não há nenhum tipo de prestação de contas política do uso da força, o que é impressionante. Os secretários de Segurança deveriam ser obrigados a prestar contas do uso da força. Quando a gente fala em comandar, nos referimos sempre ao comandante da PM ou o chefe de Polícia Civil, mas o comandante político é o governador e o seu secretário de Segurança Pública ou de ordem pública. Um secretário de Segurança, se nós fôssemos um país preocupado com segurança pública, deveria ser obrigado a apresentar um plano na Assembleia Legislativa. E anualmente, mensalmente ou semestralmente ele deveria apresentar um balanço do controle da força.

Em que momento o policial “deixa de ser cidadão” para se tornar um agente do Estado que entende sua população como inimiga?

Para entender isso, precisamos pensar em como a guerra afeta a humanidade do homem. A gente nasce ser humano, mas a humanidade é uma construção. A sociedade, o Estado, a cultura servem para alimentar ou não o humano. E a guerra atinge exatamente isto: a dimensão humana. Porque a guerra machuca, lesiona e fere a humanidade. E tem uma questão que envolve quem está mergulhado na guerra, o grande terror do homem: a morte. A humanidade é diretamente afetada pela proximidade da morte.

Nosso grande problema é não levar em conta na construção dessas ações dementes, em que a gente chama de política pública de guerras às drogas, a devastação que isso produz na humanidade de quem está envolvido. Assim, o embrutecimento é a condição necessária para você se manter vivo e íntegro nesse espaço, e o que sai, por falta de outro nome, a gente continua chamando de ser humano, que fala e pensa como ser humano, mas que está com sua humanidade comprometida. Tem que haver um trabalho de humanização não só da polícia, mas dessa juventude machucada.

E como é que a gente trata dessa humanidade?

Com cultura, com educação. Acontece que, no modelo de sociedade que a gente tem, tudo é um convite para a desumanização. A maneira como os bens culturais são distribuídos na cidade. Quem mora na periferia, quem mora na favela, tem menos acesso do que quem mora em outras regiões da cidade. Mas esse acesso é fundamental para trabalhar a humanidade de tais pessoas.

Privar as pessoas de acesso aos bens culturais as expõe a um ambiente de violência simbólica contínua e rotineira, e a gente não pode esperar nenhum tipo de demonstração de humanidade dessas pessoas. E a guerra, para ela, se torna um meio de afirmar a sua subjetividade. Este processo de embrutecimento é também um processo de subjetivação, melhor que nenhum processo, porque vai haver algum processo. Se não for por este mecanismo, será por outro. A guerra produz uma subjetividade capaz de fazer guerra.

Tanto do lado da polícia, como estratégia de sobrevivência, como para quem está à margem. E o heroísmo é uma forma de lidar com a morte. Ninguém quer morrer: nem o policial nem a juventude que está no tráfico. Sustentar um fuzil, estar numa quadrilha é um modo de ser. Um modo de ser que é melhor que nenhum modo de ser. O ser humano não vive invisível. Tem uma questão profunda, sutil e transversal, que a violência deixa de ser instrumental e passa a ser construtiva. De violência a gente vive, e passa a ser um modo de vida e de afirmação da individualidade.

Isso contribui para o senso comum que diz que “bandido bom é bandido morto”?

A expressão idiota faz sentido para este senso comum, produzido, construído a partir da mídia, que trabalha nessa percepção de que o traficante realmente é o nosso inimigo, que ele coloca em risco o nosso modo de viver. Quando a gente trabalha na lógica do inimigo, tal discurso faz sentido para este senso comum rasteiro e pouco crítico. E isso vem colonizando o espaço público, a esfera pública.

Assim como muitas pessoas acham que direitos humanos servem para defender bandido?

É porque a gente não assumiu os direitos humanos como bandeira radical do Estado que estamos vivendo esse horror. Se não trouxermos para o conjunto de ações, se não dividirmos melhor, se não enfrentarmos a desigualdade, se não ajudarmos quem está na margem, a situação só vai se agravar.

O nosso problema é justamente que aquilo que poderia nos salvar é o que a gente repudia. A gente repudia exatamente o remédio. Por isso a gente não sai da UTI, porque estamos recusando o remédio, que é mais direitos humanos, para todos, já que é para o homem. A vida humana não é uma prioridade para o Brasil. A economia é a prioridade. A vida está subordinada à lógica do capital, da propriedade. Enquanto isso vigorar, só vamos colecionar fracassos.

No Complexo do Alemão, uma questão levantada pelos moradores diz respeito ao despreparo dos policiais que atuam na favela. Há problemas na formação?

Toda vez que acontece uma violência policial, a gente fala do treinamento, da mudança curricular, da formação. Tudo isso é fundamental. Mas tem um aspecto da formação, o que vai impactar nas ações, que tem a ver com o currículo oculto. Ou seja, se existe uma política pública militarizada, fundada na guerra, você vai ter currículo oculto. Independentemente, mesmo que se tenha uma quantidade imensa de horas-aula de direitos humanos, a guerra produz um processo de subjetivação de embrutecimento que é inerente a ela mesma. Isso acontece de forma subterrânea, na cultura policial.

Se quisermos ter uma Polícia Militar, devemos criar um modelo próprio para essas polícias. Parar de copiar o modelo do Exército. Criar um modelo que pudesse operar a partir das atribuições que são próprias da polícia, que é a garantia das atribuições do indivíduo.

Em última análise, isso será bom para o estrago que a exposição à violência produz em todo mundo, inclusive nos agentes policiais. Porque só enfrentando tal estrago é que a gente pode, efetivamente, reformar as polícias. Não é apenas uma questão de reformar um modelo, mas de reformar uma mentalidade: a violência é a desumanidade.

Há pouco tivemos no Rio uma demonstração: um sujeito bateu num veículo, brigou, puxou uma arma e disparou um tiro que atingiu uma criança. Hoje o Brasil é um país mergulhado na barbárie.

Como sair desse quadro em que o Rio de Janeiro se encontra?

Precisamos ter coragem política para superar. Vontade política passa pelo Congresso Nacional, enfrentar os lobbies corporativos, e não é fácil fazer. Completamos 30 anos de Constituição. Seria um bom momento para fazer uma discussão madura sobre segurança pública, envolvendo as instituições. É fundamental ouvi-las, e não tenho dúvidas de que, se conseguíssemos, melhoraríamos. Não precisávamos assistir a criança de 10 anos levando tiro na cabeça, dentro de casa, ou um bebê sendo baleado na barriga da mãe.

Estamos numa zona de conforto muito grande e ninguém quer abrir mão dela. A Polícia Civil não quer abrir mão do inquérito, para pensar numa forma mais ágil. O Ministério Público não quer assumir um papel mais efetivo em relação ao controle da polícia. O fiscal da lei é o Ministério Público. Um país onde a polícia mata mais de 3 mil pessoas por ano precisa do Ministério Público. Que já está aí, já existe. Mais esse Ministério Público precisa lembrar que é o fiscal da lei e controlar as polícias.

Necessitamos de um Judiciário mais presente, mais próximo do povo. O juiz não pode ser distante do mundo, da realidade, do povo. Ele não é uma figura mítica, quase um deus. A Polícia Militar não pode ter medo de discutir modelo militar. Isso para o bem de todo mundo, inclusive para os próprios agentes policiais, que estão sendo vitimizados. É uma questão de racionalidade.

José Cícero da Silva é jornalista.
Entrevista publicada originalmente pela Agência Pública.

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