Correio da Cidadania

Apesar de um recuo, trabalhismo inglês avança

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Na liderança de Tony Blair, o Labour afastou-se dos seus princípios originais para adotar as políticas de ajuste fiscal, privatizações e redução de benefícios sociais, em moda a partir dos fins do século 20. Com isso, ele e seus sucessores – Gordon Brown e David Miliband (em parte) – aproximaram-se das posições do Partido Conservador, afastando o público tradicional do trabalhismo. O resultado foi a perda do governo e uma redução dos seus votos, que chegaram a menos de quatro milhões nas eleições de 2014.

Em 2015, os trabalhistas elegeram Jeremy Corbyn para sua liderança, numa mudança que colocou a esquerda no controle do partido.

Inconformados, os blairites (seguidores de Tony Blair), que são maioria na bancada do Labour no parlamento, tentaram duas vezes derrubar Corbyn, sem êxito.

Possíveis eleições antecipadas, forçadas pelos fracassos do governo Theresa May na discussão do Brexit, poderão reconduzir os trabalhistas ao poder.
Isso preocupa associações judaico-inglesas pró-Israel, pois Corbyn, que se tornaria o próximo primeiro-ministro, é um firme defensor da causa palestina.

Esses dois grupos viram uma chance de derrotar a esquerda do Labour, encarnada em Corbyn, quando, em dezembro de 2016, a direção do partido, ao aprovar a definição de antissemitismo do IRHA (International Holocaust Remenbrance Alliance), rejeitou quatro dos exemplos citados como racistas.

Ofensiva hipócrita

Neste ano, uniram-se várias associações judaico-inglesas, o Movimento Judaico do Labour, o Comitê dos Deputados Judaico-Ingleses e outros parlamentares da direita trabalhista numa campanha exigindo a aprovação integral da definição do IRHA, condenando a suposta leniência trabalhista na repressão interna do racismo e acusando Corbyn de tendências antissemitas.

Sessenta e oito rabinos e três jornais judaico-ingleses reforçaram esse poderoso time. Quase toda a grande mídia inglesa aderiu entusiasticamente, publicando, diariamente e com destaque, diatribes dos adversários de Corbyn. Espaço muito menor foi oferecido a ele e seus defensores.

Ataques extremamente raivosos deram o tom da campanha. Um dos seus mais furiosos líderes, a deputada blairite Margareth Hodges, em pleno parlamento de Westminster, chegou a chamar Corbyn de “antissemita e racista fodido”.

Foi também muito divulgado um ataque de Jonathan Sacks, antigo rabino-chefe na comunidade inglesa.

Em discussão pública, com a participação de um grupo de sionistas, Corbyn dissera que aqueles sionistas, “não tinham ironia, apesar de viverem nesse país por um longo tempo”.

Foi o bastante para Sacks o classificar como “um perigoso antissemita”. E ainda taxar o comentário do líder trabalhista como “a mais ofensiva declaração feita por um político inglês sênior, desde o discurso do “Rio de Sangue”, de Enoch Powell, em 1968”, lembrado como particularmente ofensivo à imigração africana.

Os mencionados 68 rabinos fulminaram a negação dos quatro exemplos de antissemitismo do IHRA. De acordo com eles, só os judeus, sendo as maiores vítimas desse preconceito, teriam o direito de definir antissemitismo. Posição largamente assumida pelos participantes nas manifestações contra Corbyn.

Aliás, ridícula, pois seria como definir feminismo fosse privilégio de mulheres ou que só crianças poderiam criar leis conta a pedofilia.

O site multirreligioso Patheos foi sarcástico: “Mesmo os 68 rabinos, que discordariam nos outros assuntos políticos ou religiosos, decidiram que a definição do IRHA tinha sido talhada em pedra pelo próprio Moisés e estava além de um envolvimento crítico”.

Israel é só um Estado

Não há legitimidade para a campanha criticar Corbyn em nome da comunidade dos judeus ingleses. Eles não conferiram um mandato para ela representá-los.

Certo que são associações importantes, mas também existem associações judaico-inglesas que defendem Corbyn e a supressão dos quatro exemplos.

Quarenta associações judaicas, de 15 países, inclusive o Reino Unido, lançaram manifesto contestando os detratores de Jeremy Corbyn e dos trabalhistas.

Nesse sentido, alguns expoentes da comunidade judaico-inglesa – intelectuais, professores, jornalistas, advogados e escritores – escreveram artigos publicados pelo The Guardian. Num deles, diz a escritora judaico-inglesa Jacqueline Rose: “no Reino Unido, a comunidade judaica não fala com uma só voz. Nós não achamos que qualquer definição que ganha predominância num dado tempo, ou apoio majoritário em muitos estratos da comunidade judaica, está fechada para discussão permanente”.

Foi o que não fizeram os acusadores da direção do Labour. Não argumentavam: limitavam-se a condenar, ofender, gritar, exigir.

Na verdade, essas pessoas não tinham mesmo como justificar sua postura exaltada. Só uma leitura enviesada pode afirmar que os famosos quatro exemplos são mesmo de antissemitismo.

Transcrevemos aqui: considerar a existência do Estado de Israel como um empreendimento racista; acusar os judeus de serem mais leais a Israel do que a seu país de origem; exigir de Israel níveis mais altos de comportamento do que a outras nações; comparar as atuais políticas israelenses com as dos nazistas.
Na verdade, todos os quatro exemplos são críticas a Israel. Não ao povo judeu. Uma coisa é Israel, outra uma coisa são os judeus.

Quem é racista?

Em editorial, na edição de 25 de julho último, o insuspeito The Guardian diz: “Coletivamente, os judeus não são de modo algum responsáveis pelas ações de Israel”.

Posição compartilhada pelo manifesto das 40 associações judaicas internacionais: “como judeus, rejeitamos o mito de que criticar Israel é ser racista”.

Talvez os judeus sionistas, ou seja, defensores de um Estado para os judeus no território antes majoritariamente habitado por árabes, possam se sentir ofendidos quando Israel é atacado.

Sucede que nem todos os judeus são sionistas. Caso do jornalista e escritor Robert Cohen, que afirma em carta publicada no site Patheos (setembro de 2018): “há agora uma discordância em toda a parte a respeito de Israel e o sionismo, em si. E eu espero que o conhecimento dessa crescente discordância o faça perceber que o apoio aos judeus não exige um apoio automático a Israel”.

Mesmo judeus sionistas não apoiam necessariamente os rumos tomados pelo país que seus líderes criaram.

Ainda mais agora que o governo Netanyahu deu razão a quem acusa Israel de ser um Estado racista, com uma lei que declara Israel um país onde os moradores de raça judaica têm mais direitos do que os demais, mesmo os árabes, que são 20% da população.

Há inúmeros exemplos internacionais de judeus críticos das violências e ilegalidades praticadas, particularmente, pelo governo do primeiro-ministro Netanyahu.

Seriam eles antissemitas?

Afirmar que o Estado de Israel, não importa quais políticas que pratique, está associado indissoluvelmente aos judeus de qualquer país, é injusto e causa dano às pessoas dessa raça.

Injusto porque está se negando a elas o direito de terem opinião própria, de criticarem ações dos governos israelenses.

Causa danos porque a imagem atualmente muito negativa de Israel, sob um governo de extrema-direita, pode contaminar a imagem dos judeus em todo o mundo. E dessa maneira estimular a proliferação do antissemitismo.

O líder trabalhista, cuja trajetória política é claramente antirracista, teria bons motivos para responder com agressividade às mentirosas acusações contra ele.

Mas Corbyn não reagiu assim. Referiu-se às críticas com humildade, reafirmando suas posições, mas se desculpando caso involuntariamente tenha magoado algum judeu. Não adiantou nada. A raiva continuou imperando na campanha.

O jornal direitista The Mail, de propriedade do magnata Rupert Murdoch, trabalhou exaustivamente para descobrir situações que, distorcidas, surgiram pintadas como provas do antissemitismo de Jeremy Corbyn. Todas foram adequadamente contestadas.

Mesmo assim, muitos dirigentes trabalhistas temeram que a campanha hostil pudesse provocar a perda de grande número de votos dos seus adeptos. Justamente num momento quando o Labour aparece como líder nas pesquisas, reunindo as maiores chances para vencer numa eventual eleição e assumir o governo do Reino Unido.

Seus receios não tinham razão de ser. Em pesquisa realizada em agosto, quando a campanha já vinha rugindo há meses, os trabalhistas aumentaram sua liderança para 4% a mais do que a posição dos conservadores. A vantagem era de 2%, no mês anterior. Isso não acalmou os chefes trabalhistas.

Optaram por serem pragmáticos: em reunião no começo de setembro, acabaram aceitando os quatro exemplos de antissemitismo. Como proteção, acrescentaram uma advertência que a aprovação dos quatro exemplos, de modo algum importaria em restringir a liberdade de expressão sobre Israel ou a defesa dos direitos dos palestinos.

Os adversários celebraram esse resultado, mas não ficaram satisfeitos. Queriam mais, condenaram a advertência.

Para a deputada Margareth Hodges foram “dois passos para a frente e um para atrás”.

Para Jennifer Gerber, diretora da associação Amigos Judaicos de Israel: “Foi chocante, que o partido Labour mais uma vez ignorou a visão clara e repetidamente expressa pela comunidade judaica de que ele deveria adotar a definição do IHRA completa, sem adições, omissões ou advertências”.

Nessa mesma época, realizou-se a eleição para renovação da direção nacional do Labour.

Todos os grupos anti-Corbyn, animados pelo ruído da campanha que estrondou pelo país, esperavam muito dos resultados desse evento.

Resposta

Esperanças vãs. A esquerda trabalhista saiu ainda mais forte, elegendo os 9 membros que dirigirão o partido.

Depois da meia vitória na aceitação dos “quatro exemplos” (diminuída pela advertência final), os adversários terão pela frente uma demolidora proposta do Momentum, facção do Labour integrada por Corbyn.

Pelo regulamento partidário, um deputado tem automaticamente garantido o direito de disputar as eleições como único candidato trabalhista pelo seu distrito. Para impedir que ele tente a reeleição como o candidato trabalhista exclusivo, seria necessário que fosse aceita internamente uma moção o acusando de graves ações. As regras desses procedimentos são muito complicadas, tornando dificílima a aprovação da deselection (perda do direito à eleição) de um deputado trabalhista.

Por isso, apesar da maioria absoluta dos 500 mil membros do Labour ser favorável às políticas da esquerda do partido, larga maioria dos assentos no Parlamento inglês continua ocupada pelos blairites, que foram escolhidos em anos ou mesmo décadas anteriores, quando a direita partidária predominava.

Inconformados com a linha mais à esquerda, seguida a partir de 2015, quando Corbyn foi eleito líder, os deputados da direita, muitos deles membros de associações judaico-inglesas pró-Israel, tentaram várias vezes, sem êxito, derrubar o atual líder. Aliás, como fizeram agora no episódio dos quatro exemplos de antissemitismo.

Com as regras vigentes, a maioria dos deputados do Labour são de segundo, terceiro ou até quarto mandato, e não representam o pensamento atual da maioria absoluta dos membros do Partido Trabalhista.

A bancada partidária no parlamento se tornou um grupo fechado para novos elementos, ela não representa a maioria dos membros do Labor.

Como se sabe, não existe democracia plena sem representatividade real.

O sistema atual do Labor não passa da sobrevivência de uma política antiquíssima, quando os deputados eram donos das vagas do partido nos seus respectivos distritos.

Trata-se de uma séria falha estrutural, altamente prejudicial.

Não haverá paz no partido, se ele continuar dividido entre sua base majoritariamente ligada à esquerda e a maioria da bancada parlamentar composta de blairites.

Com a reforma proposta, os deputados passariam a de fato representarem os membros do Labour. E claro, para o partido tornar-se mais forte é preciso lutar unido, o que só será conseguido através do respeito às minorias. Os blairites estão à direita do Labour, mas não são propriamente direitistas.

Se o partido promover uma mudança democrática, eles também terão seu espeço na bancada parlamentar, porém, proporcional ao seu contingente da base partidária.

Esse caminho de conciliação vem sendo proposto por Jeremy Corbyn. Já não se fazem líderes esquerdistas como antigamente. Alguns são melhores.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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