Correio da Cidadania

Uruguai: o progressismo fecha os olhos (2)

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Ernesto Herrera

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Ciclo ou parêntesis?


Primeiro de março de 2018. Já não há entusiasmo. Nem multidões tomando as ruas para saudar Tabaré Vázquez, o “companheiro presidente”. Como ocorria há 13 anos, quando a Frente Ampla assumia o governo nacional pela primeira vez. Neste ocasião, o progressismo optou por “defender sua gestão”, por uma “nova estratégia de comunicação”: a Cadeia Nacional de Rádio e Televisão. Sem barulho militante nem tremulações de bandeiras. Assim os eleitores meditam atentos em suas casas.

A tropa de choque aprova sem pestanejar. Tanto o conteúdo como a modalidade. São os milhares de “quadros políticos” e sindicalistas que se reciclaram como “gestores/administradores” do aparato de Estado. Para empurrar “mais à esquerda”. E que seguem com os rabos presos em seus “cargos de confiança política”. Faz tempo que abandonaram as teses de disputa. Seus principais instigadores, o Movimento de Participação Popular (MPP) e o Partido Comunista, a tiraram o dicionário. Defendem sua cota de poder na “nova elite governante”. Exercendo o clientelismo, comprando ONGs, traficando influências, usando dinheiro público. Fazendo carreiras como camada social privilegiada.

Mais de uma década depois daquela “reviravolta política” que prometia, segundo Tabaré Vázquez, um “caminho de transformações” que faria “tremer as raízes das árvores” o resultado é, quando muito, ávaro. Inclusive a partir de uma perspectiva “reformista”.

Leis de proteção laboral; direitos sindicais; “recuperação salarial” (entre 2005-2013); redução da pobreza e da indigência (entre 2005-2015); “agenda de novos direitos” (despenalização do aborto, legalização da maconha, matrimônio igualitário). Enfim, 600 mil pessoas (27% da população) integradas ao “confortável” consumo de “classe média”.

Não obstante, as “assinaturas pendentes” superam a lista de matérias aprovadas. Apesar de uma década com recorde histórico de “crescimento econômico” que permitiu uma “recuperação salarial sem precedentes”, quase a metade da força de trabalho “percebe uma remuneração inferior aos 600 dólares mensais (22)”. O desemprego se encontra em 8,5% (145 mil pessoas). Uma cifra “não dramática” segundo o governo. Mas no caso dos jovens, o desemprego chega a quase 25%.

Em torno de 185 mil pessoas habitam os “assentamentos irregulares”. As 15 mil moradias populares que Mujica prometeu no marco do seu “generoso” Plano Juntos, foram menos de 3 mil ao final do seu mandato. A gravidez na adolescência chega aos 17% nos bairros mais pobres e a zero nos mais ricos. Apenas 2% dos filhos da “classe trabalhadora” consegue acesso à Universidade. No ensino público, 6 de cada 10 alunos não completam os seis anos de ensino secundário.

As pautas do programa econômico, certificado pelas Instituições Financeiras Internacionais em junho de 2015, na cidade de Washington, estão vigentes. As ataduras às condições que impõem a “mundialização” capitalista, também. A fraudulenta dívida externa é paga pontualmente. Ao final, o progressismo resultou um “caminho possível”... na mesma direção.

Portanto, é um exagero falar de dois “ciclos” ou de duas “eras”. Neoliberalismo e “pós-neoliberalismo” convergem na mesma lógica. A prosa “neodesenvolvimentista”, apenas um eufemismo que não modifica a equação. A “matriz” foi projetada pelos governos de coalizão entre colorados e blancos na “década perdida de 90” e assim continua. Os pilares são os mesmos. Lei Florestal; Lei de Investimentos; Lei de Zonas Francas; Sistema de Administradoras de Fundos de Pensão (Afap); Lei de Portos.

Quando a Frente Ampla era oposição de esquerda se opôs ao processo de contrarreformas liberais, promovendo em alguns casos plebiscitos e referendos. Mas nenhuma foi revogada nestes 13 anos.

O “ciclo progressista” consistiu, justamente, em mais continuidade. Desregulação financeira; desnacionalização da produção e do comércio de produtos exportáveis: soja (100% transgênica), carne, arroz, trigo, lácteos; concentração e estrangeirização da terra; multiplicação do regime de zonas francas; exonerações tributárias às multinacionais de celulose e mineradoras; privatizações e sobcontratações. Os sucessivos governos da Frente Ampla ainda agregaram: Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), primeiro mandato de Vázquez; lei de “Participação Público-Privada”(PPP) e Lei de “Inclusão Financeira”, mandato de Mujica (23); privatização-terceirização de áreas e serviços do Banco da República, no segundo mandato de Vázquez.

A agenda econômica não contemplou, em nenhum momento, uma real distribuição da riqueza. A “rentabilidade” empresarial sempre esteve coberta dos vaivéns “cíclicos” da economia. Em todo caso, o progressismo se beneficiou do parêntesis que abriu a “bonança” dos commodities (entre 2004 e 2010), para “ocultar o conflito distributivo” e gerar recursos de investimento público e financiamento do processo assistencialista das políticas sociais. Ainda que o montante destinado a essas políticas nunca tenha alcançado 0,4% do PIB nacional (24).

No Vamos, a política econômica foi apenas uma. Coerente. Jamais esteve “em disputa”. Nem mesmo um “bate e assopra” entre duas equipes econômicas. As diretrizes foram marcadas por seu principal teórico e executor: Danilo Astori. O historiador e cientista político Gerardo Caetano, a quem ninguém pode taxar de “radical” ou desinformado, o descreve com precisão. “Me causa risos quando me dizem que Astori é o grande perdedor da interna frenteamplista. Nos três governos, depois do presidente, ele foi sem dúvida o homem mais poderoso nesses 11 anos. Vázquez o respaldou sempre e Mujica quase sempre – ainda quando tenham discutido, na hora da verdade o respaldou. Portanto, a mera discussão da política econômica do governo frenteamplista se tornou um tabu (25)”. E continua sendo, ainda que de vez em quando haja um pouco de gritaria e ranço, muitos militantes se sentem “desconcertados”. Incômodos.

Partido de Estado

Ninguém pretendia, ou sequer imaginava, que a Frente Ampla seria um governo de “ruptura capitalista”. Que fosse colocar em termos de juízo as relações sociais de produção ou que demoliria as instituições do regime burguês de dominação política. Tampouco que assumiria uma postura soberanista diante da prepotência do “campo imperialista”. De fato, está a favor de firmar Tratados de Livre Comércio com quem quer que seja. Por exemplo, é um dos sócios do Mercosul mais propensos a concretizar, rapidamente, o que se negocia com a União Europeia.

Sua definição estratégica se baseou em chegar ao poder do Estado, submetendo-se ao regime de “democracia governável”. Já quanto à brutal crise econômico-financeira de 2001-2003, seu compromisso foi preciso: “lealdade institucional”. Enquanto diversos analistas nacionais e internacionais (incluindo o FMI) davam que o presidente de então, Jorge Battle (Partido Colorado) estava “com os dias contados”, amorteceu as terríveis consequências sociais para “não incendiar a pradaria”. Não houve saques, nem greves gerais, nem assembleias de bairros, nem gente batendo panelas nos ônibus como em Buenos Aires. E muito menos o “que se vayan todos”. Foi o último exame – aprovado. O trampolim para a vitória eleitoral de outubro de 2004.

Certo. A Frente Ampla não chegou ao governo por uma onda de insurgências populares, nem rebeliões massivas. É a diferença com a Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela. Não estava obrigada a ir pelas “reformas estruturais” do programa “antioligárquico” e “anti-imperialista” de 1971, quando foi fundada.

A reforma agrária, a nacionalização dos bancos privados, a reforma urbana, a nacionalização do comércio exterior, não eram já uma senha programática da classe trabalhadora e seus aliados populares. A crise de 2001-2003 foi um ponto de inflexão. As demandas baixaram ao chão. O desastroso quadro socioeconômico se rebaixou para a “expectativa de inflação”. Era preciso “recuperar” condições de vida suportáveis. Mais de 150 mil trabalhadores haviam perdido o emprego no setor privado; o salário sofreu uma queda de 20%; a pobreza e a indigência somavam 39%.

Em tal sentido, o progressismo se encarregou da “herança maldita” semeada pela “crise do neoliberalismo”; recompôs em parte o “tecido social”, reduziu índices de “pobreza recente” e, fundamentalmente, restaurou a “normalização” sistêmica.

Exercendo o poder como um partido de Estado. Ou seja, como partido da ordem capitalista. Fato qualitativo e definidor que os setores frenteamplistas “desconcertados”, no geral, omitem das suas análises. Com maiorias parlamentares (nos dois primeiros mandatos) e sem formalizar um governo de coalizão com a grande burguesia, como no caso do Partido dos Trabalhadores no Brasil, o progressismo uruguaio aplicou com prudência a estratégia de “unidade nacional” a partir de uma consistente política de colaboração de classes. Que é preciso dizer, contou e conta com um amplo consentimento social.

Evidentemente, a “decadência ideológica” da “centro-esquerda” foi saltando etapas. Começou com distintas “atualizações programáticas”, como o acesso ao governo municipal de Montevidéu há 28 anos, e com a ideia verticalista de que “as mudanças” são mais eficientes, duradouras e sustentáveis, se realizadas “a partir de cima”. Desmotivou-se, assim, qualquer processo de auto-organização por fora do institucional (partidos, sindicatos, grêmios estudantis, ONGs cooptadas etc.). Razões que também esquecem os militantes da Frente Ampla que hoje são críticos e se perguntam o que aconteceu nesse percurso (26). Sem responderem a si mesmos sobre a natureza e a função atual da Frente Ampla.

Voto nulo

As forças políticas que decidem na Frente Ampla e sustentam o governo, já não podem se considerar “de esquerda”, nem em um sentido prático e nem programático. Sua capa dirigente é, essencialmente, um grupo de funcionários e parlamentares que vivem dos cargos públicos e das nominações eleitorais; que negocia por dentro do aparato de Estado com um conjunto de inimigos da classe trabalhadora (direita política, poderes midiáticos, corporações patronais, instituições financeiras internacionais, governos imperialistas ou reacionários).

Uma capa social conservadora que, mais além das suas contorções discursivas e espasmódicas “viagens de esquerda”, é irrecuperável, inclusive para uma luta mais ou menos “reformista”. Seu horizonte estratégico é o poder pelo poder mesmo, seu programa está desprovido de um projeto de nação soberana e órfão de qualquer noção de emancipação social.

Obviamente, isto não significa subestimar a Frente Ampla como máquina eleitoral. Neste terreno seguirá gravitando. Tanto como sua indiscutível capacidade de voltar a recrutar votos e vontades que se inclinam pelo “menos pior” e pelo “não volte a direita”. Estes deveriam se perguntar “qual direita?”

No Uruguai não há espaço para fotocópias de Macri ou Piñera. Os postulantes com mais chances de competir com o progressismo nas eleições de outubro de 2019 (Luis Lacalle Pou e Jorge Larrañaga do Partido Nacional), às vezes mostram os dentes, sobretudo no tema da insegurança pública, mas em matéria de política econômica, sabem, muito bem, que há pouca margem na sociedade para “retroceder”. Resumindo, propõem “melhorar o que foi feito” e “uma gestão mais profissional”. Assim, o “perigo da direita” acaba se tornando mais uma estratégia eleitoral da Frente Ampla.

As conclusões que resultam destes 13 anos de progressismo no Uruguai coincidem com as realizadas por Decio Machado e Raul Zibechi em torno dos chamados “governos nacionais e populares” ou “pós-neoliberais” do “ciclo progressista” que viveu a América do Sul. “O que entrou em crise foi um projeto que buscou administrar o capitalismo realmente existente, ou seja, extrativo – mas com bons modelos. O resultado dos anos dedicados a gerenciar o modelo foi o acesso de novas proles de gestores que se incrustaram nos mais altos escalões do Estado, fazendo como nas administrações centrais, nas empresas estatais em aliança com empresas privadas. A crise do progressismo revela o que o discurso pretendeu mascarar: como as políticas sociais, sob o argumento da justiça social, os combates à pobreza e à desigualdade se limitaram a cooptar os dirigentes populares para tentar domesticar os movimentos dos mais pobres (27)”. Por isso, em nenhum desses governos houve algo nem remotamente parecido com um “processo revolucionário” ou o que seja o “socialismo do século 21”. Adéqua-se melhor ao contrário.

A verdadeira “disputa”, portanto, passa por (re)construir um campo da esquerda socialista e revolucionária. E não apenas corrigir o “rumo perdido” da antiga esquerda. Se a função central do progressismo é amansar o potencial “anticapitalista” da massa trabalhadora, os desafios das forças de “intenção revolucionária” são, ou deveriam ser: superar sua dramática dispersão atual; forjar um vínculo real com as resistências sindicalistas e populares; ser protagonista visível, sem pretensões vanguardistas; refletir-se em termos de alternativas programáticas e estratégicas antagonistas do poder de Estado e de sua arquitetura institucional.

Enfim, uma esquerda antiparlamentar, de Voto Nulo, que exponha as armadilhas das diversas “opções eleitorais”. E neste quadro aqueles militantes “desapaixonados” da Frente Ampla enfrentam um dilema: há um incômodo dentro, seria pior fora?

Parte 1
 
Notas

22) “Hijos de la tierra. Apuntes sobre la economía política del Uruguay”, Gabriel Oyhantçabal. y Rodrigo Alonso, artículo publicado en el libro “Entre: ensayos sobre lo empieza y lo que termina”, Estuario editora, Montevideo, 2017.

23) A propósito del poder de los “servicios financieros” y sus consecuencias económicas y sociales, hay un estudio riguroso de Lena Levinas, investigadora del Instituto de Economía de la Universidad Federal de Río de Janeiro, “La financierización de la política social: el caso brasileño”, publicado en el sito de Sin Permiso, el 10-10-2015: (http://www.sinpermiso.info/textos/la-financierizacion-de-la-politica-social-el-caso-brasileno).

24) “Modos de ocultar el conflicto distributivo. Focopolítica en Uruguay”, Leticia Pérez, Brecha, 26-8-2016.

25) “El próximo presidente del FA tendrá que hacer varios parricidios”, entrevista a Gerardo Caetano, Brecha, 22-7-2016, y Correspondencia de Prensa, 23-7-2016.

26) Un resumen de las posiciones de estos sectores críticos, la expone el sociólogo Gabriel Delacoste en una entrevista titulada “La decadencia del progresismo no es electoral sino ideológica”, Brecha, 9-2-2018. Lacoste integra el colectivo de jóvenes académicos y activistas de diversas redes sociales, militantes del Frente Amplio, que publicaron el libro citado en la nota 22.

27) “Cambiar el mundo desde arriba. Los límites del progresismo”. Decio Machado y Raúl Zibechi, Ediciones desde abajo, Bogotá, 2016.


Ernesto Herrera é jornalista uruguaio, editor e correspondente internacional do noticiário francês L’Encontre – onde o texto foi publicado em espanhol.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

Ernesto Herrera

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