Correio da Cidadania

A Clínica Pública de Psicanálise, ou a psicanálise como canteiro aberto (2)

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Título original: Canteiro Aberto, aspectos públicos dentro do Estado e os motivos das palavras Clínica, Pública e Psicanálise

A Clínica Pública de Psicanálise aponta para a relação entre a cidade e o psiquismo, como se o psíquico mesmo fosse um canteiro aberto, a ser cultivado e conhecido, em relação mútua, entre e através das fronteiras penetráveis do dentro e do fora. A escolha das três palavras que dão nome à experiência não é sem sentido. Clínica, porque se trata da prática, da ação terapêutica, deste fazer, como diria Cornelius Castoriadis, em oposição à ideia de uma técnica a ser reproduzida para um fim predeterminado, ou mesmo como uma profissão liberal. Infelizmente, só há pouco vim a conhecer o inspirador Clínica Peripatética, de Antonio Lancetti, e ali me deparei com a noção de “clínica” como o gesto do médico que se debruça sobre o paciente deitado.

Ele adicionou o conceito “peripatético”, portanto, para retomar a dimensão de movimento deste tratamento. Peripatético era o costume de Aristóteles ensinar passeando. Pôr o paciente em pé. Não cronificá-lo, nem na vida, nem no tratamento. No galpão do Canteiro Aberto, que é extensão da rua, o sujeito que procura a Clínica não encontra um hospital, mas um lugar onde pessoas de idades e classes diferentes brincam, fazem coisas circenses, tocam piano, jogam bola, leem, namoram. Uma praça.

Situação diferente da que me diz uma paciente que atendo em outros lugares, que se queixa diariamente das idas ao hospital-dia ao qual está vinculada: “Aqui [no hospital-dia] eu venho pra me tratar, mas só me faz lembrar de que estou doente”. Outra usuária de um hospital-dia, com um discurso semelhante, passou a frequentar a Clínica e levar alguns de seus colegas, simplesmente para passar um tempo. Ficavam perto do consultório-aberto, conversavam com quem estivesse por lá, seja analista ou não, participavam das outras atividades que aconteciam simultaneamente. Em retribuição, ela entregava os panfletos da Clínica na rua. E o fixou no muro do hospital-dia para formar um grupo de saída organizado por ela.









Entre os móveis de formato inusual – os quais muitas vezes usamos para as conversas, os tecidos coloridos e os trabalhadores do canteiro, há uma aposta de injeção de vida na contramão dos trajetos habituais do cotidiano determinado pelo trabalho e consumo, pela noção funcional de saúde e doença e assim por diante. Este lugar altera nosso fazer clínico (como pano de fundo desta ideia, e para saber mais sobre a crítica do urbanismo posterior à segunda guerra mundial, que, ao redesenhar as cidades do mundo de acordo com a nova ordem econômica e política, fez delas imagem e semelhança de um shopping center, ampliado e pré-definido, recomendo a leitura de Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, organizado por Paola Berenstein Jacques.)



Pública é a palavra de ligação. Público, conceito em disputa, ao mesmo tempo desgastado e em aberto. Outro dia, o deputado Rogério Marinho, do PSDB, relator da ‘reforma’ trabalhista, disse que o “excesso de tutela do Estado prejudica gestantes”. Agora leio Ives Gandra Junior, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, dizer que trabalhadores podem se automutilar caso as indenizações por acidentes no ambiente do trabalho sejam “altas”... O sistema público de saúde está sob ataque, ao lado de tudo o que é da ordem do coletivo, comunitário. As praças públicas de São Paulo estão em processo de privatização. Os espaços de decisão política cada vez mais impossíveis de serem acessados, ao ponto de desistirmos gradativamente de ocupá-los.

Talvez esteja próximo de se realizar o sonho de Margaret Thatcher, primeira-ministra inglesa nos anos 1980. Conhecida também como Dama de Ferro, Maggie quis fazer do neoliberalismo não apenas uma forma tática de reajuste político que prioriza as leis do mercado em detrimento do Estado de bem-estar social, mas algo a transformar a alma das pessoas. A ponto de se tornar uma nova racionalidade que nos deforma, que altera a subjetividade e o jeito de governar, produzir e gerir os recursos, como argumentam Dardot e Laval, em A nova razão do mundo, livro que historiciza a construção do neoliberalismo desde a década de 1930, ironicamente apoiado na institucionalidade do Estado.

Isso se desdobra no ideal-realizado da pessoa como empresa de si mesma, em concorrência permanente e incansável com as demais, fragilizando os laços sociais, esgotando as energias vitais e responsabilizando o indivíduo, na medida de seu próprio esforço, pela sorte e o azar do sucesso na vida, independente das circunstâncias históricas, de classe, de raça, de gênero. O fim da história, neste mundo aparentemente sem futuro, é a impessoal e inconsciente forma empresa como referência para todas as demais relações – de amor, de trabalho, de saúde, de fé – garantida juridicamente por uma grande empresa responsável por todas, o Estado, organizado agora mais do que nunca como uma agência facilitadora pró-mercado e não como um mecanismo de equilíbrio das diferenças econômicas artificializadas pela lógica do próprio mercado, cujos efeitos produzem menos sociedade e mais barbárie, como já foi dito há muito tempo.

O que significa, então, retomar, ressignificar esta palavra e colocá-la como mediação entre Clínica e Psicanálise? Palavra que pode se referir à instância responsável pelo cuidado da própria população que a criou e sustenta. Uma forma de autocuidado, autopreservação ativa, que mantém a dimensão de existência social, geração após geração. Público é o mesmo que Estado? Este mesmo Estado regulador da racionalidade neoliberal? Não.

Mas o Estado ainda suporta a existência de aspectos de “não-mercado” e, num país como o Brasil, de raízes fortes coloniais, escravocratas, de desigualdades colossais, não me parece termos agora o privilégio de abrir mão de ampliar os aspectos públicos dentro do Estado. Público significa ser de todos e todas? Isso, por consequência, pode justificar, por exemplo, a expulsão das famílias da Vila Itororó daquele espaço que agora será “de todos”? Público significa achatar as singularidades, ofertando serviços (como o linguajar do mercado se insere por todas as brechas!) equânimes para pessoas cujas demandas são diferentes? Poderíamos optar pela palavra Comum, ou Comunitário? Comunitário, no mesmo livro acima citado de Antonio Lancetti, sofre uma crítica justamente pelo aspecto “unitário”, nivelador, enquanto “Comum” abriria amplas perspectivas de compreensão e de coexistências. Comum também vem sendo utilizado como conceito de uma nova forma de instituir a democracia neste mundo distópico. Dardot e Laval definem o comum como “o público não-estatal, que garanta o acesso universal através da participação direta dos usuários na administração dos serviços”, que supera a divisão entre usuários e funcionários.

Mas a partir da aproximação entre o que estou chamando de aspectos públicos dentro do Estado e do público não-estatal dos autores franceses, há algumas ponderações que gostaria de fazer, pela escolha da palavra “público” e não “comum”. Acredito que Comum, neste caso, neste país, é uma palavra que traz mais perdas do que ganhos associativos. É uma palavra que, a mim, soa como apaziguadora, como se pudesse sugerir um elemento mínimo de igualdade num país radicalmente desigual. Acredito também que o conceito explora muito pouco a dimensão econômica.

Como podemos, no Brasil, abrir mão de um instrumento capaz de captar recursos e, através dele, inverter as prioridades de sempre, como se dizia durante o governo Erundina em São Paulo no fim dos anos 1980? Outro dia um rapaz veio até a Clínica e disse que, por muitos motivos diferentes, com variações e significações emocionais distintas, ele só podia estar aqui por ter o direito ao transporte garantido pelo passe livre estudantil.

Política pública popular conquistada com luta, que responsabiliza, um pouco mais do que antes, os mais ricos pela sustentação da vida social. Isso aponta para outra semelhança no que os autores chamam de Comum e o que defendo como aspectos públicos do Estado: um circuito de participação política transformadora ativa, de baixo para cima. Há considerações a fazer sobre isso do ponto de vista clínico, com a cautela que a clínica demanda. A participação das pessoas que nos procuram no fazer da clínica pode acontecer de variadas formas. Pela simples aceitação do convite de vir até a Clínica falar sobre a vida, realizando conjuntamente conosco esse momento analítico, essa situação analítica, até contribuir material-afetivamente para sua existência, ainda que não pela troca mediada pelo dinheiro.

Como outro dia uma paciente o fez, ao nos trazer fatias de bolo para que nos alimentássemos no intervalo dos atendimentos. Ou quando um menino, que também vai até a clínica, desenhou comigo um campo de futebol de botão, para que jogássemos uma partida, e levou para sua casa o papel-campo e os próprios botões.

A participação aqui parece requerer tempo, tempo para que o sujeito expresse sua relação com o cuidado deste espaço ou mesmo expresse um não querer cuidar dele, atacá-lo, divergir mesmo indo, sustentando algumas contradições internas e a própria independência. O tempo, seus processos e sua continuidade, é da maior importância para instituir uma cidade, uma sociedade, uma cidade psíquica.


Nenhuma dessas ideias é nova, é bom que se destaque isso, para não cairmos novamente no discurso de mercado das novidades. Sem levar em consideração formas consistentes de redistribuição das riquezas acumuladas por muito poucos a partir do trabalho da maioria, não acredito ser possível instituir uma nova sociedade realmente democrática. E por ora, ao que me parece, não temos, independente de nosso pensamento mágico, de nosso sonho, outras instituições com a força suficiente pra fazê-lo que não o Estado. Contradições.

Minha aposta é que possamos repensar, pela psicanálise, a singularidade dentro do comunitário-solidário, e que a esfera pública é a única capaz de dar sustentação e recursos para garantir a perpetuação desta experiência no tempo. E há algo de especial em uma proposta de transformação das coisas públicas que surge de uma experiência coletiva independente e comunitária, de baixo para cima, que não espera ou depende da sensibilidade e habilidade dos ocupantes provisórios do espaço governamental, sempre inseguro e sob suspeita.

Aqui há uma prática instituinte, no sentido que Castoriadis o pensou, quando defendeu a existência de instituições a serviço da autonomia, no lugar das instituições a serviço do mercado e da burocracia. Para que não tenhamos de começar tudo sempre do zero, ou menos do que isso, e depender apenas dos recursos libidinais desejantes – ou dos poucos recursos econômicos que sobraram após longas jornadas de trabalho mal remunerado – dos sujeitos ativos no processo, não devemos instituir formas redistributivas de arrecadação de recursos para custear trabalhos como esse, por exemplo? Voltarei à questão dos recursos mais adiante.



Por fim, Psicanálise. Fazer de escuta, presença e conversa. Ação terapêutica, forma de investigação do psiquismo e dos efeitos da história familiar e social a cada momento, em cada sujeito, com todo seu ineditismo. Forma de tornar explícito o que é implícito numa comunicação espiral dialética, como diria Enrique Pichon-Rivière; ou um trabalho em que o sujeito reconheça seus desejos, seu discurso, que conheça os desejos e discursos dos outros (outros que são também sociais) que operam sobre ele e construa, a partir daí, uma relação de autonomia em relação ao outro, ou com o outro.

Nossa clínica é política, mas não estamos aqui para ensinar ninguém uma nova subjetividade. Ainda que todo o nosso arranjo contribua com o processo de transformação dos sujeitos, como também o faz a forma do consultório tradicional. Há também esta especificidade: uma clínica de psicanálise, mas não só da prática tradicionalmente reconhecida como psicanálise: a sessão com um analista e um analisando. Ela brota, deriva, do trabalho de uma artista, integrante do grupo que faz, além do pensamento dialógico sobre o próprio dispositivo, o trabalho de vínculo transferencial com os ex-moradores(as) da Vila.

Desejamos o uso artístico na Clínica. Desejamos que os artistas e outros trabalhadores afetivos, como agentes comunitários, agentes sociais, antropólogos, historiadores e assim por diante, que queiram trabalhar conosco, possam conhecer ideias específicas que a psicanálise revelou ao mundo sobre algumas das formas como as pessoas se constituem psíquica e socialmente. Isso é socializar o conhecimento, e deixar a psicanálise ser transformada, oxigenada permanentemente por esses outros saberes que se aproximam em muitos pontos.

Escolhemos manter “psicanálise” no nome por ser uma palavra que circula pouco entre as classes populares. Sintoma de sua burocratização, elitização e atualmente tímida atuação na esfera pública e popular, assim como um sintoma da rede pública burocratizada, e agora em processo de desintegração interessada pelos governos-mercado, que priorizam outros campos da área psi, em especial as medicamentosas e comportamentais. Acreditamos ser uma tarefa política importante que “psicanálise” faça parte do léxico popular, que lhe pertença também.

Uma tarefa que demanda da psicanálise um pensamento contínuo de desconstrução de suas “razões próprias” de funcionamento. A psicanálise também tem o direito de se refazer e se deixar transformar pela vida popular. Nasceu assim. Breuer e Freud eram médicos “de família”, trabalharam também em bairros onde viviam os judeus pobres como a própria família Freud. Quanto aprenderam nestas situações?


Esta cadeira não foi colocada ali pelos analistas da Clínica. Não sabemos quem o fez. Mas a partir dessa montagem, fez-se uma
situação analítica. A imaginação do que é psicanálise estaria sendo incorporada pelos utilizadores ou trabalhadores do canteiro?)


Um espaço de trabalho psíquico, artístico, criativo, instituinte do que, já sendo, pode vir a ser a esfera pública popular, a partir do conhecimento dos efeitos deste mundo na vida psíquica compartilhada e trabalhada entre analista e analisando. Um fazer que trabalha no aqui e agora do sofrimento ou da alegria dos que nos procuram. Produzimos um momento público de cuidado com o interesse de expandi-lo, talvez até mesmo a constituir, ou reconstituir, o sentido, o afeto público como um objeto interno que hoje não é mais tão facilmente reconhecido.

A quantidade de pessoas que nos procuram revela a necessidade dessa expansão, a sua importância, a sua relevância como contribuição para a experiência de vida das gerações que agora vivem e das que virão. É uma forma de fazer que definiria como, tomando de empréstimo uma fala do cineasta Eduardo Coutinho, materialismo mágico (1).

Nota:

1) “A pessoa se completa no que diz”, da série Encontros, da editora Azougue.

Parte 1

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